sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Lápide 015 - Harold Pinter (1930-2008)


O dramaturgo e roteirista britânico Harold Pinter, que também atuou como ator, diretor e autor de teatro e teledramas, vencedor do Nobel de Literatura 2005, morreu aos 78 anos de idade, com um câncer (que começou no esôfago e ganhou o fígado). A terrível doença (“meu inferno pessoal”, declarara) já o impedira de ir à recente cerimônia que o empossou como Doutor “Honoris Causa” na Central School of Speech and Drama de Londres.

Filho de imigrantes judeus que chegaram à Inglaterra no século XIX, através de Portugal, perseguidos desde a Rússia e a Polônia, Pinter atribuía à sua própria vivência do anti-semitismo na juventude sua decisão de tornar-se um dramaturgo. Integrante da angry generation britânica, assombrando pelo Holocausto e pela ameaça atômica da Guerra Fria, Pinter escreveu peças teatrais que primavam pela crítica social, o absurdo das situações e a sensação de uma ameaça iminente, como The Birthday Party (“A festa de aniversário”, 1958).

Pinter escreveu 25 roteiros para o cinema, desde a versão de sua própria peça The Caretaker / The Guest (“O convidado”, 1963), dirigida por Clive Donner, fotografada por Nicolas Roeg e produzida de forma independente por um consórcio de celebridades, incluindo Richard Burton, Elizabeth Taylor, Peter Sellers, Noel Coward e Leslie Caron; e incluindo alguns projetos não realizados, como A tragédia de Rei Lear (2000), sua adaptação da peça de William Shakespeare, encomenda do ator Tim Roth, que até hoje não foi filmado. E ele se orgulhava de todos os filmes que escrevera, sendo que o único do qual retirara seu nome dos créditos foi The Remains of the Day (“Vestígios do dia”, 1993), de James Ivory, que teve seu roteiro inteiramente reescrito.

De todos os filmes escritos por Pinter, destacam-se três, realizados pelo cineasta Joseph Losey: o inquietante The Servant (“O criado”, 1963), a partir da novela de Robin Maugham, em que um patrão de caráter fraco vê-se pouco a pouco seduzido, subjugado e humilhado pelo próprio criado, que se revela progressivamente ambicioso, sádico, dominador; Accident (“Estranho acidente”, 1967), a partir da novela de Nicholas Mosley, sobre um triângulo amoroso que termina de forma violenta, num desastre de automóvel misteriosamente simbólico; e o perturbador The Go-Between (“O mensageiro”, 1970), adaptado da novela de L. P. Hartley sobre um menino usado como correio pela exuberante prometida (Julie Christie) do tio aristocrata numa ligação clandestina que ela mantém com um empregado da fazenda vizinha (Alan Bates): sofrendo a frustração de seu primeiro amor, o adolescente termina conduzindo os amantes, que ele surpreende em coito na estrebaria, a um trágico desenlace, pouco antes do início da Primeira Guerra Mundial. Outro roteiro que Pinter escreveu para Losey, uma adaptação de O tempo reencontrado, de Marcel Proust, não chegou a ser filmado.

Ainda que sem a mesma vigorosa estranheza e ambigüidade de sua parceria com Losey, Pinter escreveu outros roteiros tão elegantes e frios, como os de The Last Tycoon (“O último magnata”, 1976), último filme de Elia Kazan, sobre um grande produtor hollywoodiano (Robert de Niro) que decai perseguindo uma garota que lhe recorda um amor do passado; e onde Jack Nicholson tem um pequeno papel, e Robert Mitchum, Tony Curtis, Ray Milland, Dana Andrews e Anjelica Huston aparecem em cameo roles; The French Lieutenant's Woman (“A mulher do tenente francês”, 1981), de Karel Reisz, a partir do romance de John Fowles, com Maryl Streep e Jeremy Irons; Betrayal (1983), de David Hugh Jones, onde Pinter ficcionou sua própria traição conjugal com a radialista Joan Bakewell no início dos anos de 1960; Turtle Diary (“Diário da tartaruga”, 1985), de John Irving, com Glenda Jackson; The Comfort of Strangers (“Uma estranha passagem em Veneza” / “Estranha sedução”, 1990), de Paul Schrader, versão de O prazer do viajante, de Ian McEwan, e onde um casal de sadomasoquistas (Helen Mirren e Christopher Walken) atrai para seu sombrio palácio um jovem casal (Natasha Richardson e Rupert Everett) em passeio romântico e turístico em Veneza, envolvendo-os numa teia de sedução até a morte; The Trial (“O processo”, 1993), de David Hugh Jones, sóbria adaptação do romance de Franz Kafka; e Sleuth (2007), de Kenneth Branagh, seu último roteiro cinematográfico, revivendo a peça de Anthony Shaffer adaptada pelo autor na primeira versão em Sleuth (“Jogo mortal”, 1972), último filme do veterano Joseph L. Mankiewicz.

Tanto em suas peças quanto em seus roteiros Pinter criava uma realidade aparentemente banal pouco a pouco transfigurada em mistério pela sutil atmosfera de perversão que perpassava os diálogos cortantes e os momentos pesados de silêncio, com uma aguda consciência de classe projetada na alma dos personagens. A atenção aos detalhes transformava-se freqüentemente em verdadeira obsessão de Pinter: durante os ensaios de uma de suas peças, que ele mesmo encenava, implicou com um ator cujo papel limitava-se a ficar num canto sem se mexer, com um capuz na cabeça, e exigiu que o ator fosse substituído por outro, pois aquele “não estava bem no papel”. O típico humor negro inglês também nunca deixou de fazer parte de seu universo.

Depois de escrever 29 obras teatrais, Pinter encerrou a carreira de dramaturgo com um drama musical, Voices, de 29 minutos, escrito em colaboração com o compositor James Clarke: uma narrativa fragmentária sobre o “inferno que todos compartilhamos aqui e agora”, enfocando violentos abusos de prisioneiros inocentes por seus torturadores contra projeções em tela de fundo de imagens de Estados totalitários não identificados. A mente e a obra de Pinter eram ocupadas pelas feridas na alma causadas tanto pelos jogos do desejo nas relações sexuais e conjugais quanto pelos jogos do poder nas relações entre assassino e vítima, torturador e torturado, senhor e escravo.

Eterno enragé (em 1949 negou-se a prestar o serviço militar por objeção de consciência; em 1996, rechaçou o título de cavaleiro que lhe oferecera o governo de John Major), nos seus últimos anos Harold Pinter alinhou-se com a “esquerda” oficial, cada vez mais desorientada após a queda do Muro. Prestou solidariedade ao ditador Fidel Castro; assinou o manifesto “Se eu fosse venezuelano, votaria em Hugo Chávez”; associou-se ao infame Comitê Internacional de Defesa de Slobodan Milosevic apelando para a libertação do genocida diante da “injustificável” intervenção da NATO na Iugoslávia; protestou contra o alinhamento da Inglaterra com o governo Bush durante a Guerra do Iraque pedindo a retirada das tropas britânicas; e, numa de suas raras manifestações em público, durante a marcha pacifista de Londres em 2003, bradou: “Os Estados Unidos é um monstro desenfreado (...) um país governado por um bando de lunáticos criminosos com Tony Blair como seu assassino cristão mercenário”.

Americana igualmente opositora dos abusos da guerra e vítima de um longo câncer, Susan Sontag manteve até o fim da vida, ao contrário de Pinter, o senso crítico e autocrítico: ela qualificou com razão de nonsense o discurso antiamericano de Pinter no festival literário de Edimburgo em 2002, onde ele classificou os EUA de “Império do mal” e concluiu que 11/09 refletia “o que o mundo pensa sobre os EUA, o país mais poderoso e odiado do planeta”. “Dizer que isso é o que todos pensam dos EUA”, observou Sontag, “é estúpido. Isso é metade do que as pessoas pensam dos EUA. A outra parte é a mais abjeta adoração a essa cultura popular terrível que corrompe o planeta. Minha visão talvez seja simplista, mas a de Pinter é ainda mais. Ele é um demagogo. O imperialismo americano é amado e odiado”.

Luiz Nazario

domingo, 9 de novembro de 2008

Lápide 014 - Desmond Llewelyn (1914-1999)

Desmond Llewelyn, como Mr. Q (primeiro à esquerda), em A View to a Kill (1985)

Desmond Llewelyn começou sua carreira de ator no teatro, em 1939, interpretando um fantasma na comédia Ask a policeman, de Will Hay. Este primeiro papel já era talvez uma premonição de seu destino: aos 80 anos de idade, o ator retornou ao noticiário por ter sido mais uma vez escalado para interpretar, em Goldeneye, o 17º filme da série de James Bond, produzido por Michael Wilson e dirigido por Martin Campbell, o personagem que o celebrizou: Mr. Q, o cientista que vive suprindo o espião inglês de novos equipamentos secretos e artimanhas tecnológicas.

Como Mr. Q, Desmond Llewelyn viajava pelo mundo para promover cada nova produção da série, onde geralmente aparecia por um minuto ou dois. Ele carregava sempre consigo uma maleta de couro preta. A maleta era de boa qualidade mas, com o uso, tornou-se puída, estragada. Mantida sem cuidados, ela parecia refletir o estado de seu dono; não apenas seu estado de espírito, mas também seu estado físico, pois Desmond tinha as pernas e as mãos inchadas e não fazia questão de demonstrar, nem de longe, uma aparência jovial.

Diante de Desmond Llewelyn, os homens de imprensa não sabiam o que dizer, o que perguntar. Por isso ele se previnia e também trazia consigo uma antologia de suas aparições na tela, “para refrescar suas memórias”, como dizia aos jornalistas. Era de fato uma medida necessária. Em toda a série 007, as intervenções de Mr. Q somavam cerca de dez minutos, e isto porque a colagem que Desmond projetava incluía as cenas subseqüentes à sua aparição nos filmes, aquelas que se seguiam à ordem dada pelo Chefe para que Mr. Q calasse a boca, e nas quais ele não era mais visto em cena.

Mesmo depois de ver essa montagem, os jornalistas ainda hesitavam em perguntar alguma coisa a Desmond. Então, segurando um copo de uísque, o velho ator conclamava: “Vocês vão perguntar alguma coisa ou vão ficar aí, bebendo os seus uísques?”. Depois de serem assim constragidos a demonstrar curiosidade a respeito de um velho ator, os jornalistas, que só tinham se ocupado, por exemplo, da jovem e bela Fiona Fullerton, uma das vilãs de um dos últimos James Bond, resolviam voltar suas atenções para Desmond Llewelyn.

O velho ator insistia em que estava muito velho. Quando surgia a pergunta inevitável: “O senhor tem projetos para novos filmes?”, a resposta já amargava em sua boca: “Agora estou velho demais.”. Diante do constrangimento geral, Desmond resolvia ser mais sociável e elaborava uma explicação: “Há muitos papéis que eu gostaria de ter interpretado, mas agora estou muito velho para todos eles”. O velho ator sentia que já havia dito tudo o que tinha a dizer e ia então buscar sua maleta de demonstração, largada num canto da sala.

A maleta tinha um dos fechos quebrado e seu mistério durava apenas um instante. Desmond Lleweyn carregava dentro dela uma coleção de bobagens usadas nos filmes de 007: um óculos especial de raio-X que não passava de um simples óculos escuro; o primeiro modelo de “bip”, lançado num dos filmes de 007; o primeiro projeto de câmara submarina, igualmente “inventado” por Mr. Q; uma caneta cujo truque não podia mais encantar ninguém, porque já fora estragada por crianças; e uma faca de mola, dessas usadas em teatro, que Desmond afirmava não pertencer a James Bond, mas ser uma arma sua, para “esfaquear jornalistas que fazem perguntas irritantes”, ele sussurrava, para quem quisesse ouvir.

Desmond Llewelyn ia tirando todas essas bugigangas da maleta e exibindo cada uma delas maquinalmente, sem o menor entusiasmo. Esses objetos o diminuiam aos seus próprios olhos. Ele sabia o quanto valiam. Llewelyn via-se, na velhice, reduzido a representar um menino – ele, que já fora, no teatro inglês, um herói de William Shakespeare... Ele, que engajdo no exército inglês em 1939, combatera os nazistas e fora feito prisioneiro na França em 1940, permanecendo prisioneiro até o fim da guerra, ou seja, por cinco anos. Por isso ele desprezava aquelas coisas “modernas” usadas por Sean Connery, George Lazenby, Roger Moore, Timothy Dalton e Pierce Brosnan, na pele de James Bond. Ele as tomava e as jogava sobre a mesa, para exibi-las à imprensa, e depois as guardava na maleta aos solavancos, enfiando tudo de qualquer jeito, enquanto elogiava, sarcasticamente, o caráter de antecipação e autenticidade daquela tralha.

Fazia isso por dinheiro e pelo prestígio que adquiriu naquele eterno cameo role. A maleta o sustentava na velhice, era o seu ganha-pão, e o seu show particular. Ela o incomodava, e ao mesmo tempo o exaltava: aposentado, aproveitava essas oportunidades que a série James Bond lhe oferecia para rodar o mundo por conta dos produtores de cada novo filme, promovendo-o a seu modo. Mas Desmond Llewelyn também gostaria de ter interpretado outros papéis, e de ter sido reconhecido como um grande ator dramático. O mercado é cruel: não foi Shakespeare, mas Ian Fleming, quem lhe proporcionou esses contatos com a imprensa, o público e o mundo.

Na pele de Mr. Q, Desmond Llewelyn voltava a ser o fantasma de sua primeira experiência teatral. E, no entanto, Desmond encontrava uma certa grandeza nessa humilhação consentida. Para si mesmo ele criara um personagem absurdo, que poderia ter saído da imaginação de um Samuel Beckett, misto de caixeiro-viajante e Jesus Cristo, que se vingava contra a sorte injusta carregando sua maleta 007 como se carregasse uma cruz. Havia algo de sagrado na via crucis de Desmond Llewelyn. A jovem starlet que o acompanhava, ainda perseguindo suas ilusões, sentia pelo velho ator algo entre a piedade e o respeito. E até o lembrava, com zelo maternal, de mostrar uma das quinquilharias que jazia no fundo da maleta, e que ele havia esquecido de exibir, ou nem quisera pegar: um carrinho de James Bond, um desses modelos miniaturas que se encontram à venda em qualquer lojinha de brinquedos.



Desmond Llewelyn morreu em 1999 num acidente automobilístico, um dia antes do lançamento londrino de sua biografia: Q: The Biography of Desmond Llewelyn. Na série Bond, o comediante John Cleese assumiu o papel de Mr. Q em Die Another Day (2002), mas as aparições do personagem sofreram uma solução de continuidade: o inventor amalucado e visionário que Desmond Llewelyn viveu em dezessete filmes da série Bond foi aposentado na reinação mais vulgar e brutal do 007 de Daniel Craig, em Casino Royale (2006) e Quantum of Solace (2008). No cinema, como na realidade, os produtos da inteligência – mesmo daquela estritamente prática, sorrateira e tecnológica, que os gadgets de Mr. Q manifestavam – vão ficando cada vez mais fora de moda...

Luiz Nazario

domingo, 15 de junho de 2008

Lápide 013 - Sydney Pollack (1934-2008)


Nascido de Indiana, em 1934, o cineasta (e também produtor e ator) Sydney Pollack faleceu na Califórnia, cercado de parentes e amigos, em decorrência de um câncer, a 26 de maio de 2008, aos 73 anos. Assim como Robert Altman, Pollack começou sua carreira de diretor na televisão, dirigindo, nos anos de 1960, dezenas de episódios para séries como Ben Casey, The Fugitive e The Alfred Hitchcock Hour, além de telefilmes para o Kraft Suspense Theatre e o Bob Hope Presents the Chrysler Theatre. Em 1961, Pollack conheceu o jovem ator Robert Redford durante as filmagens de Obsessão de matar (War Hunt, 1962), de Denis Dunders, filme no qual atuavam juntos: além de amigo pessoal, Redford se tornará o ator-fetiche do cineasta.

Depois de realizar um primeiro longa-metragem em 1965, Pollack se destacou com Essa mulher é minha (This Property Is Condemned, 1966), drama existencial baseado numa peça de um ato de Tennessee Williams, roteirizada por Francis Ford Coppola, Fred Coe [que dirigiu apenas dois filmes, ambos notáveis: Mil palhaços (A Thousand Clowns, 1965) e Uma garota avançada (Me, Natalie, 1969)], Edith Sommer e David Rayfiel. O filme descreve a vida num bordel de ferroviários, numa cidadezinha próxima a New Orleans, e onde a inescrupulosa senhora Hazel Starr (Kate Reid, em atuação brilhante), explora a própria filha, Alva (Nathalie Wood, em seu melhor papel), “a atração principal do local”, segundo a irmã mais nova, Willie (Mary Badham), que desenrola a trama num longo flash-back. O forasteiro Owen Legate (Robert Redford), que percorre cidadezinhas para demitir empregados da ferrovia, em recesso com a crise que abala a economia nos anos de 1930, hospeda-se no bordel; e desperta a paixão de Alva, mas a mãe devassa, cínica, materialista, tem outros planos para a jovem, destruindo todas suas possibilidades de felicidade. O universo malsão de Tennessee Williams é suavizado pela visão politizada de Pollack; mas o melhor do filme deve-se ao conflito típico criado por aquele dramaturgo em suas obras, entre o princípio de prazer, representando por uma personagem decadente e idealista, que sonha os mais lindos sonhos, enterrada na lama, e o princípio de realidade, encarnado num macho belo e frio, sexualmente prático, indiferente aos finos bordados da alma humana. Do ponto de vista cinematográfico, dois planos merecem destaque: quando a imagem se desprende, durante a fuga de Alva, da janela do trem, até abarcar toda a planície que ele percorre e, no final, quando a câmara se afasta de Willie e sobrevoa os trilhos, a longa distância. Estes extraordinários travellings panorâmicos aéreos foram uma proeza técnica do fotógrafo James Wong Howe, quando não havia computadores para criar tais efeitos. Destaque ainda para a bela canção Wish Me a Rainbow, de Jay Livingston e Ray Evans, que abre e fecha o filme:

Wish me a rainbow and wish me the stars
All this you can give me wherever you are
And dreams for my pillow and stars for my eyes
And the masquerade ball where our love wins first prize
Wish me red roses and yellow baloon and caress us whirling to gay dancing tunes
I want all these treasures the most you can give
So wish me rainbow as long as I live
All my tomorrows depend on your love

So wish me a rainbow above.


O filme seguinte de Pollack, Revanche selvagem (The Scalphunters, 1968), é um faroeste satírico, politizado e anti-racista. Não resistimos a transcrever sua sinopse tal como foi divulgada em seu DVD brasileiro, verdadeira pérola do WorldLingo:

"Se pode ser dito que um western tem alguma coisa para todo mundo, com certeza é Revanche Selvagem, diz o Motion Picture Herald sobre esta bufante e apimentada aventura cheia de humor e comentários satíricos sobre as relações entre as raças. Em uma performance verdadeiramente em polvorosa, Burt Lancaster interpreta Joe Bass, um peleiro de fronteira casca-grossa. A carga de peles conquistada com muito trabalho duro por Joe é capturada por um bando de Kiowas não muito amigáveis, que a querem trocar por um escravo fugido que capturaram. Como o educado e criado na cidade Joseph, Ossie Davis está tão determinado a conseguir sua liberdade quanto Lancaster a conseguir as suas peles de volta. Junte tudo isso com um bando de predadores escalpeladores liderados por Telly Savalas junto a uma Shlley Winters mascadora de fumo e o inferno está liberado! Misturando fortes elementos de ação com uma comédia de farsa sem tamanho, o roteirista William Norton e o diretor Sidney Pollack [...] foram vitoriosos em produzir um entretenimento para todos os gostos."

Logo ocorreu o maior momento de cinema de Pollack: A noite dos desesperados (They Shoot Horses, Don’t They?, 1969), um magistral filme político, baseado na novela de Horace McCoy sobre a crise americana da Grande Depressão iniciada com o Crack da Bolsa de Nova York em 1929, drama revivido para evocar a nova crise americana aberta com a Guerra do Vietnã. Num dos maiores desempenhos de sua carreira como a impetuosa Gloria Beatty, Jane Fonda criou uma personagem inesquecível com sua determinação de vencer uma maratona de danças por volta de 1932, arrastando o desanimado parceiro Robert Syverton (Michael Sarrazin) até a vitória. Mas é uma vitória de Pirro, pois toda a determinação dos concorrentes é previamente quebrada por um sistema perverso, viciado, que Gig Young, como Rocky, o condutor sem ética do certame, encarna à perfeição. Um sistema que chega às raias da loucura ao obrigar os vencedores a pagar todas as despesas do concurso, nada sobrando para eles mesmos. Com este filme violento, histérico, um dos melhores manifestos cinematográficos antiamericanos da esquerda americana, Pollack entrou para a História do Cinema. Já seus filmes seguintes não tiveram a mesma força nem o mesmo impacto, ainda que tenham conquistado a crítica e o público.

Em Mais forte que a vingança (Jeremiah Johnson, 1972), Robert Redford encarna o personagem real de Jeremiah Johnson, soldado do exército americano que escapa da guerra mexicana no final do século XIX para viver como eremita nas montanhas, entrando em conflito com os nativos ao violar um santuário. A deserção do Exército estava na ordem do dia nas fileiras pacifistas americanas que marchavam em Washington e o filme pretendia assim, alusivamente, revelar uma dimensão política militante sob a aparente “alienação” de seu personagem de pioneiro desbravador em belíssimas paisagens naturais.

Nosso de amor de ontem (The Way We Were, 1973) tem o inconveniente de Barbra Streisand a desempenhar seu eterno papel de moça feia que conquista os homens mais lindos por força de um suposto “charme”. Ela aqui é Katie Morosky, uma judia comunista empedernida que vive uma relação conflituosa com Hubbell Gardiner (Robert Redford), o all american guy de cabelos dourados e sorriso perfeito, que esconde um talento superficial de escritor sob seu tipo esportivo e que, após servir na Marinha durante a Segunda Guerra, faz sucesso como roteirista de Hollywood em pleno macartismo. Quando Katie, grávida, é denunciada como comunista justo quando Hubbell se prepara para assinar novo e rendoso contrato, o casal separa-se definitivamente. Esta cena foi cortada por Pollack, também produtor do filme, após o fracasso de uma primeira exibição-teste, para o desgosto de Streisand e do roteirista Arthur Laurents [de Festim diabólico (Rope, 1948), de Alfred Hitchcock; Na cova das serpentes (The Snake Pit, 1948), de Anatole Litvak; e Quando o coração floresce (Summertime, 1955), de David Lean]: no filme lançado, a separação parece dar-se por causa de um romance extraconjugal. Apesar dessa concessão ao grande público, o filme assume o ponto de vista de Katie, cujo apartamento está recoberto de retratos de Lênin e de Stalin. Mas é a inverossímil história de amor entre os dois personagens ideologicamente opostos, condensada na famosa canção-tema de Marvin Hamlisch, gravada pela atriz cantora, que fez o sucesso deste filme água-com-açúcar teimosamente esquerdista.

Os filmes seguintes de Pollack – Três dias do Condor (Three Days of the Condor, 1975), suspense político com Redford e Faye Dunaway; Cavaleiro elétrico (The Electric Horseman, 1979), comédia romântica com Redford e Jane Fonda no mundo dos rodeios; Tootsie (Tootsie, 1982), comédia de costumes com Dustin Hoffman e Jessica Lange atualizando o tema de Viktor und Viktoria (Alemanha, 1933), de Reinhold Schünzel, refilmado por Blake Edwards em Vitor ou Vitória (Victor Victoria, 1982), sobre desempregado que se traveste para conseguir emprego; Entre dois amores (Out of África, 1985), com Redford e Maryl Streep em drama romântico histórico que consagrou Pollack com o Oscar de Melhor Diretor; Havana (Havana, 1990), com Redford e Lenna Olin em suspense romântico ambientado nos cassinos cubanos de antes da revolução; A firma (The Firm, 1993), suspense político com Tom Cruise e Jeanne Tripplehorn; Sabrina (Sabrina, 1995), desnecessária refilmagem, com Harrison Ford e Julia Ormond, da clássica Sabrina (Sabrina, 1954), de Billy Wilder – consolidaram Pollack como diretor de prestígio em Hollywood, com suas arestas esquerdistas sempre bem aparadas. Seu penúltimo filme, A intérprete (The Interpreter, 2005), com Nicole Kidman e Sean Penn, é um thriller político acima da média; e o último, Esboços de Frank Gehry (Sketches of Frank Gehry, 2005), um fascinante documentário sobre o famoso arquiteto. Mas se a carreira de Pollack começou com a mesma contagiante energia das suas personagens enragées Alva Starr, Gloria Beatty e Katie Morosky, ela acabou assumindo uma falsa neutralidade a Owen Legate, uma dignidade sóbria a Robert Syverton e um brilho superficial a Hubbell Gardiner.

Filmografia

1965: Uma vida em suspense (The Slender Thread).
1966: Esta mulher é proibida (This Property Is Condemned).
1968: Revanche selvagem (The Scalphunters).
1969: A defesa do castelo (Castle Keep).
A noite dos desesperados (They Shoot Horses, Don't They?).
1972: Mais forte que a vingança (Jeremiah Johnson).
1973: Nosso amor de ontem (The Way We Were).
1974: Operação Yazuka (The Yakuza).
1975: Três dias do Condor (Three Days of the Condor).
1977: Um momento, uma vida (Bobby Deerfield).
1979: O cavaleiro elétrico (The Electric Horseman).
1981: Ausência de malícia (Absence of Malice).
1982: Tootsie (Tootsie).
1985: Entre dois amores (Out of Africa).
1990: Havana (Havana). DVD nacional fora de catálogo.
1993: A firma (The Firm, 1993).
1995: Sabrina (Sabrina). DVD nacional fora de catálogo.
1999: Destinos cruzados (Random Hearts).
2005: A intérprete (The Interpreter).
Esboços de Frank Gehry (Sketches of Frank Gehry).

Nota
: Não disponível no Brasil, o melhor filme de Pollack, A noite dos desesperados, pode ser adquirido em DVD no site da Amazon.

Luiz Nazario

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

Lápide 012 - Curtis Harrington (1926-2007)


A 6 de maio de 2007 morreu, aos 80 anos, em decorrência de complicações de um derrame, o até hoje ainda mal apreciado e quase ignorado cineasta norte-americano Curtis Harrington, especialista em filmes de suspense e terror independentes e que, apesar de seus baixos orçamentos, eram finamente estilizados em seu sinistro paródico, banhados numa irresistível atmosfera camp. Harrington fez seu primeiro filme em 8 mm, aos 14 anos, na UCLA. Nos anos de 1940-1950, trabalhou com Maya Deren. E realizou seus próprios curtas-metragens de vanguarda, entre os quais Fragment of Seeking (1946), onde “um homem procura encontrar a si mesmo explorando sua sexualidade”. Colaborou ainda com Kenneth Anger em Puce Moment (1949, fotografia) e Inauguration of the Pleasure Dome (1954, ator).

A partir de 1957 foi assistente de produção de diversos filmes de baixo orçamento e, em 1961, estreou como diretor, com o horror bizarro e surreal de A noite do terror (Night Tide, 1961), com Dennis Hopper. Depois de usar cenas do filme soviético Planeta das tempestades (Planeta Bur, 1962), de Pavel Klushantsev, em seu Planeta pré-histórico (Voyage to the Prehistoric Planet, 1965), com Basil Rathbone no papel do Professor Hartman, que organiza em 2020 uma expedição a Vênus, Harrington realizou Planeta sangrento (Queen of Blood, 1966), com o mesmo Rathbone vivendo Dr. Farraday, que traz de Marte um alien vampiro. Alguns perceberam no filme um plot precursor de Alien, o oitavo passageiro (Alien, 1979).

Logo Harrignton revelou todo seu talento no tétrico e teatral thriller de suspense O terceiro tiro (Games, 1967), com Simone Signoret, James Caan e Katharine Ross, onde ressoam ecos de As diabólicas (Les Diaboliques, 1955), de Henri Georges-Clouzot. Harrington entrava na melhor fase de sua carreira, que prosseguiu com outros thrillers de horror psicológico, subgênero que Alfred Hitchcock colocara na moda com o sucesso de Psicose (Psycho, 1960), e que Robert Aldrich enriqueceu com o acréscimo de divas decadentes em O que aconteceu a Baby Jane (What Ever Happened to Baby Jane?, 1962), com Bette Davis e Joan Crawford, e Com a maldade na alma (Hush... Hush, Sweet Charlotte, 1964), com Bette Davis e Olívia de Havilland. Logo surgiriam outros inquietantes exemplares, como A dama enjaulada (Lady in a Cage, 1964), de Walter Grauman, com Olívia de Havilland; e Fanatismo macabro (Fanatic, 1965), de Silvio Narizzano, com roteiro de Richard Matheson, onde Tallulah Bankhead, na pele da fanática Mrs. Trefoile, prende e tortura a namorada do filho.

Seguindo o filão, e aperfeiçoando-o com sua sensibilidade estética afetada, Harrington criou os extraordinários Grand Guignols de Quem espancou tia Roo? (Whoever Slew Auntie Roo?, 1971), com Shelley Winters no papel de uma demente reinventando perversamente o conto de fadas “Joãozinho e Maria”; Obsessão sinistra (What's the Matter With Helen?, 1971), com Shelley Winters e Debbie Reynolds como duas irmãs criminosas que se disfarçam de professoras de sapateado, uma tentando fazer carreira no cinema, outra chafurdando na culpa graças às pregações da evangelizadora irmã Alma (Agnes Moorehead); The Killing Kind (1973) sobre um jovem sexualmente reprimido, condenado por estupro, que retorna ao lar para ser atormentado pela mãe terrível e dominadora (Ann Sothern); e Ruby, a amante diabólica (Ruby, 1977), sobre uma mãe perturbada vivida por Piper Laurie, cuja filha, jovem muda e rejeitada, tenta saber como seu pai foi assassinado...

Como Robert Altman, Harrington trabalhou muito para a TV, em produções alimentares, como nos diversos episódios das séries The Legend of Jesse James (“The Lonely Place”, “A Burying for Rosey”, 1966); Baretta (“Set Up City”, 1975; “Murder for Me”, 1976); Mulher Maravilha (Wonder Woman, 1976); Logan’s Run (“Stargate”, 1977); Tales of the Unexpected (“A Hand for Sonny Blue”, 1977); Angel in a Box (“Angel on My Mind”, 1978); Sword of Justice (“The Destructors”, 1978); Vega$ (1978); As panteras (Charlie’s Angels, 1978-1979); Dinastia (Dynasty, 1981), Darkroom (“A Quiet Funeral”, 1981); Hotel (1983); The Colbys (1985); e Além da Imaginação (The Twilight Zone - “Voices in the Earth”, 1987).

Mas mesmo nas produções de TV Harrington sempre deixou sua marca forte, ainda hoje subestimada pelos críticos. Procurando valorizar a decadência de grandes atores, num estilo camp de encenar contos de fada de horror com personagens dementes, inverossímeis, verdadeiros freaks afetados, ele assinou telefilmes acima da média, como Pesadelo trágico (How Awful About Allan, 1970), com Anthony Perkins e Julie Harris; O amuleto egípcio (The Cat Creature, 1973), com roteiro de Robert Bloch; Abelhas assassinas (The Killer Bees, 1974), com Gloria Swanson; Os mortos não morrem (The Dead Don’t Die, 1975), com George Hamilton e Ray Milland; e Cão do diabo (Devil Dog: The Hound of Hell, 1978), com Richard Crenna e Yvette Mimieux.

A partir dos anos de 1980, a carreira de Curtis Harrington entrou em declínio; ele conseguiu realizar apenas um filme de apelo erótico, Mata Hari (1985), com a eterna “Emanuelle” Sylvia Kristel, que teve cenas cortadas em sua versão em DVD. Seu último filme foi um curta-metragem, Usher (2002, 40’), inspirado no conto “A queda da casa de Usher”, de Edgar Allan Poe, uma produção caseira, com o que retornou aos seus tempos de vanguarda, atuando, em sua própria casa, nos papéis de Roderick e de Madeline Usher, tal como as divas decadentes que fazia interpretar as personagens insanas de seus thrillers psicológicos...

Nota

A obra de Curtis Harrington permanece inédita em DVD no Brasil. Mesmo nos EUA, não são todos os filmes que se encontram disponíveis e muitas das cópias em DVD à venda não são restauradas. A exceção é A noite do terror, lançado em DVD pela Image, com excelente qualidade e cometários do diretor e de Dennis Hopper.

Luiz Nazario

domingo, 24 de fevereiro de 2008

Lápide 011 - Alain Robbe-Grillet (1922-2008)


O escritor e cineasta Alain Robbe-Grillet morreu no dia 18 de fevereiro, aos 85 anos, no hospital na cidade de Caen, na Normandia, de causa não revelada. Na França dos anos de 1950, juntamente com Marguerite Duras, Nathalie Sarraute e Michel Butor, Robbe-Grillet foi um dos criadores do chamado nouveau romance (“novo romance”), que ameaçava a literatura engajada dissolvendo a estrutura do romance clássico em romances sem enredo, feitos somente de descrições de objetos e situações fragmentadas. Era o correlato literário do estruturalismo - antropológico (Claude Lévy-Strauss), filosófico (Louis Althusser, Michel Foucault, Jacques Derrida), crítico (Roland Barthes, Julia Kristeva) e psicanalítico (Jacques Lacan) - que ameaçava o marxismo, a psicanálise e o existencialismo ao dissolver a luta de classes, o ego e a liberdade na malha dos discursos.

O estruturalismo preocupava-se mais com a linguagem, os signos, os discursos que com a realidade concreta dos projetos individuais, das revoluções sociais, das “grandes causas” políticas, seus autores mais engajados preferindo aliar-se aos movimentos minoritários, atacando “micropoderes”, incitando “microrevoluções”. Em As palavras e as coisas (1966), Foucault sugeria que cada época era regida por um determinado discurso, do qual não se podia escapar, sendo o nosso tempo aquele que decretava o fim do humanismo.

O novo romance refletiu o fim do humanismo ao rejeitar a trama narrativa, a psicologia dos personagens, as emoções humanas. Seus autores colocavam-nos diante de um mundo sem calor, sem vida, sem sentido, num emaranhado de palavras mais próximo de um jogo que de uma representação da vida, evoluindo em longas e minuciosas descrições de objetos. Nos romances de Robbe-Grille, como Les Gommes (1953), Le Voyeur (1955), La Jalousie (1957), La maison de rendez-vous (1965), Project pour une révolution à New York (1981), Djinn (1981), Le miroir qui revient (1985) ou Les Derniers jours de Corinth (1994), praticamente nada acontece, as ações são congeladas em gestos e o mundo é apenas observado em suas formas inanimadas.

Se na literatura a narrativa impessoal, inumana, do nouveau roman não produziu nenhuma obra-prima, no cinema ela produziu pelo menos um clássico do cinema moderno: O ano passado em Marienbad (L’année dernière à Marienbad, 1961), de Alain Resnais, com base no roteiro escrito por Alain Robbe-Grillet. No filme, três personagens sem nome interagem de forma repetitiva e onírica num antigo e suntuoso hotel na cidade tcheca de Marienbad: entre longos corredores, delicadas colunatas, fontes curativas e labirínticos jardins, um homem (Giorgio Albertazzi) tenta convencer uma mulher (Delphine Seyrig) casada com um marido ciumento (Sacha Pitoeff), a fugir com ele para longe, reatando o interrompido romance das férias anteriores; porém, ela não se lembra de ter tido realmente um caso com aquele suposto amante no “ano passado em Marienbad”...

O sucesso do filme, que conquistou o Leão de Ouro em Veneza e lançou a moda do jogo de palitos com que os personagens passam o tempo no sombrio hotel barroco – parece ter provado que o “novo romance” servia mais à forma cinematográfica que à forma literária (o cinéma-stylo, conceitualizado por Alexandre Astruc seria, então, o precursor do nouveau romance no cinema). Percebendo o fenômeno, Robbe-Grillet lançou-se à direção, realizando diversos filme que tinham, paradoxalmente, mais qualidades literárias que cinematográficas: L’immortelle (1963), Trans-Europe-Express (1966), L’ homme qui ment (1968), L’Eden et après (1970), N. a pris les dés... (1971), Glissements progressifs du plaisir (1974), Le Jeu avec le feu (1975), La Belle captive (1983), Un bruit qui rend fou (1995) e Gradiva (2006).

Mas se Alain Robbe-Grillet – curiosamente formado em matemática e agronomia, donde talvez o formalismo cientificista de seu imaginário – não foi um diretor de cinema vocacionado como um Alain Resnais, seus filmes não estavam desprovidos de humor e imagens surrealistas, que podem ser constatadas também no filme extraordinário que ele escreveu para o animador belga Raoul Servais, Taxandria (1996), que combina animação com ação ao vivo.

Robbe-Grillet lecionou em Nova York e St. Louis por muitos anos, até 1990, ganhando certa notoriedade nos EUA. Em 2004, foi eleito para a Academia Francesa, mas ao recusar comprar o traje cerimonial e prestar homenagem a seu predecessor, o historiador de arte Maurice Rheims (1910-2003), não pode ser formalmente aceito na instituição. Em 2007, o escritor chocou seus leitores com cruas descrições de incesto e pedofilia em seu último livro, Un roman sentimental, um conto de fadas para adultos”. O autor defendeu-se das críticas dizendo que o livro não fazia parte de suas obras sérias. Contudo, qual de suas obras poderia ser definida como “séria”?

Nota

A
edição norte-americana lançada pela Fox Larber de O ano passado em Marienbad encontra-se há muito esgotada, alcançando preços astronômicos na seção de usados da Amazon. No Brasil, o filme chegou a sair em DVD pela Continental, em edição também já esgotada. Apenas a edição inglesa da StudioCanal está disponível, apresentando uma cópia com excelente qualidade de imagem e som, e oferecendo extras preciosos como o curta Toute La Mémoire du Monde (1956) de Alain Resnais. Poucos filmes dirigidos por Robbe-Grillet (como La Belle Captive e Le Jeu avec le feu) podem ser encontrados em DVD na Amazon. A coletânea de Raoul Servais que inclui o longa-metragem Taxandria está praticamente esgotada, restando algumas poucas cópias na seção de usados da Amazon France.

Luiz Nazario

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

Lápide 010 - Kon Ichikawa (1915-2008)


No dia 13 de fevereiro, morreu de pneumonia, aos 92 anos de idade, provavelmente o último grande mestre do cinema japonês: Kon Ichikawa, veterano dos estúdios da Toho e autor de mais de oitenta filmes. Filho de um vendedor de quimonos, Ichikawa apaixonou-se pelo cinema assistindo aos desenhos de Walt Disney. Por isso, iniciou a carreira de cineasta em 1933, como animador no J. O. Studios, em Kioto. Mas logo deixou de animar seus desenhos para tornar-se assistente de direção de filmes live action, estreando na direção com os filmes Toho senichi-ya / A Thousand and One Nights with Toho (1947) e Hana hiraku - Machiko yori / A Flower blooms (1948).

Ichikawa foi consagrado no Ocidente ao ter sua obra-prima, A harpa da Birmânia (Biruma no tategoto / The Burmese Harp, 1956), premiada com o Leão de Ouro, em Veneza. O filme também foi indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. Neste belíssimo conto de fadas sobre a Segunda Guerra, as melodiosas canções que escorrem da harpa do soldado-poeta exercem um poder mágico sobre as tropas, no mesmo sentido erótico com que Orfeu pacificava as feras através de seu canto e de sua música. Não por acaso o órfico poeta Pier Paolo Pasolini colocava A harpa da Birmânia entre os maiores filmes de todos os tempos. Ele parece mesmo ter homenageado o filme de Ichikawa ao usar um canto tradicional japonês na seqüência em que os Argonautas acompanham o som que Orfeu tira da lira em sua versão muito pessoal do mito grego de Medéia (Medea, 1969).

Uma análise mais aprofundada poderia encontrar traços do militarismo japonês na parábola pacifista de Ichikawa, com o soldado-poeta indignado, e ressentido até a loucura santa, com o tratamento dado aos soldados japoneses – que jazem sem túmulo – no fim dos conflitos. Esse ressentimento reflete, em última análise, a amargura com a derrota japonesa e o fim do império, manchando uma mensagem que se queria puramente pacifista, sem tirar, contudo, os valores poéticos dessa narrativa e a beleza plástica de suas imagens magnificamente fotografadas em preto-e-branco.

Outros filmes de Ichikawa foram celebrados pelos críticos: Fogos na planície (Nobi / Fires on the Plain, 1959), filme de guerra com uma nova mensagem pacifista; Yukinojo henge / An Actor’s Revenge (1963), drama sobre um ator de teatro kabuki (Kazuo Hasegawa, estrelando este que é seu 300º filme) que se vinga de três homens que levaram seus pais ao suicídio; Tokyo Olympiad (Tôkyô orimpikku, 1965), documentário sobre os primeiros Jogos Olímpicos transmitidos em massa pela TV, e que alguns críticos colocam acima de Olímpia (Olympia, 1938), de Leni Riefenstahl, sobre as Olimpíadas de 1936 em Berlim (que também tiveram transmissões ao vivo pela nascente televisão, mas ainda para poucos espectadores), como o melhor já realizado sobre o estafante universo dos campeões olímpicos.

Um dos últimos filmes de Ichikawa foi Dora-heita (2000), comédia de samurais cujo roteiro fora co-escrito em 1969 com Akira Kurosawa, quando os dois, juntamente com Keisuke Kinoshita e Masaki Kobayashi, fundaram a companhia cinematográfica independente Yonki-no-kai (Os Quatro Mosqueteiros), que terminou logo após o fracasso do primeiro filme produzido. O último filme de Ichikawa, Inugamike no ichizoku / The Inugamis (2006), refilmagem de um de seus sucessos no Japão, Inugamike no ichizoku / The Inugamis (1976), é um thriller de mistério; ele o dirigiu aos noventa anos, prova de uma rara vitalidade, comum, contudo, a muitos mestres do cinema, essa maravilhosa arte em extinção.

As raras e importantes obras de Ichikawa começam a surgir em DVD graças à iniciativa da Criterion Collection – a distribuidora que possui o melhor catálogo de filmes em DVD atualmente no mercado – que lançou recentemente os filmes A harpa da Birmânia, Fogos na planície e Tokyo Olympiad. Já a Animeigo lançou um filme mais recente de Ichikawa, Dora-Heita (2000).

Luiz Nazario