quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Lápide 019 - Raoul Ruiz (1941-2011)


Nascido em Puerto Montt, no Chile, Raoul Ruiz passou a adolescência e a juventude escrevendo peças de teatro: foram exatamente 100 peças escritas entre 1956 e 1962, e o número redondo correspondia a uma obsessão por esse número que ele tinha desde criança, quando decidiu um dia escrever 100 peças de teatro...

Em 1963, Ruiz realizou o curta-metragem, de vinte minutos, em preto e branco, La maleta (A mala), contando uma história deliciosamente surrealista: “Um homem passeia pela cidade com uma mala. Dentro dela, há um homem muito menor. Quando o que carrega a mala se cansa, ele para, se instala dentro da mala e o outro assume seu lugar.” Rodado depois de outro curta-metragem, El regreso (1964), e do longa-metragem El tango del viudo (1967), que ficaram inacabados, o primeiro longa-metragem devidamente finalizado de Ruiz foi Três tristes tigres (1968), baseado no romance do escritor cubano Cabrera Infante. Este filme era considerado perdido até há pouco tempo atrás, mas foi felizmente encontrado na Cinemateca Uruguaia, que o restaurou e conserva.

Em El realismo socialista (considerádo commo una de las bellas artes) [O realismo socialista (considerado como uma das belas artes), 1973], que Ruiz realizou no Chile ainda no período da Unidade Popular, um Tribunal do Povo decide que um trabalhador que “se esqueceu” de devolver uma ferramenta precisa ser punido por isso. Quando a expulsãodo culpado é decretada, o réu pergunta, ingenuamente: “Mas não podemos melhorar?”. O trabalhador torna-se cada vez mais conservador enquanto um publicitário conservador acredita chegar à solução dos problemas abraçando a causa revolucionária. Originalmente com quatro horas de duração, o filme procurava desmistificar os mitos políticos no momento mesmo em que eles nasciam. Os diálogos entre os personagens de fala macia e os que falam em voz alta revelariam as ambigüidades da linguagem: os que falam baixo seriam os mandantes e “o tom, a dicção, a atitude de classe” seriam, para além das palavras, “o verdadeiro tema do filme”, segundo Ruiz. Ainda sob a influência da Nouvelle Vague, ele ainda manifestava o desejo realista de registrar os rostos dos chilenos, com suas vozes e suas dicções originais. Mas o amor pelos jogos de espelhos e pelas narrativas labirínticas já o levava para longe do realismo.

Em 1973, a interrupção do regime comunista de Salvador Allende com o bombardeamento do palácio do governo pelos militares dissidentes levou ao poder o general Augusto Pinochet. Em meio à violenta repressão que se seguiu, com milhares de mortos, torturados e desaparecidos, a Chile Films, os Departamentos de Cinema das Universidades do Estado e a Escola de Artes e de Comunicações da Universidade Católica foram fechadas. Um balanço da destruição avalia em milhares os metros de película queimados; 400 filmes proibidos; dezenas de salas de cinema fechadas: das 445 existentes em 1970 só restaram 80 em 1988. Uma boa parte da história do cinema chileno foi assim eliminada pela ditadura.

Como outros artistas e intelectuais chilenos de esquerda que haviam apoiado o regime de Allende, Ruiz exilou-se em Paris. Mas já em Diálogos de exilados (1974) ele documentou, de modo irônico, alguns aspectos da vida de seus compatriotas exilados políticos. Como a maior parte de sua obra foi realizada nesse exílio, sua condição de exilado tornou-se, ao longo de décadas, sua segunda vida. Tendo conhecido o absurdo da existência latino-americana e o da existência em exílio, Ruiz refugiou-se no universo mágico que criou em seus filmes, regidos por leis próprias, onde a realidade é feita de jogos de espelhos e non-sense, de milagres e maravilhas. Com o apoio do Instituto Nacional do Audiovisual da França e de produtores independentes no Chile, em Portugal, nos EUA, o cineasta pode rodar um total de 113 filmes, entre curtas, médias e longas metragens, em geral bem acolhidos pela crítica, mas ignorados pelo público, devido ao caráter enigmático de suas histórias, envoltas em ironias metalingüísticas e malabarismos visuais.

Em Colloque de chiens (Colóquio dos cães, 1975), por exemplo, Ruiz utiliza algumas técnicas de fotonovela para contar a história cíclica de uma menina que descobre ter sido adotada e que, arrasada com isso, torna-se uma prostituta interessada apenas em viver no luxo. Torna-se amante de um rico senhor de 65 anos, até que se apaixona por um jovem de aparência andrógina, que a tira daquela vida de perdição. Já casada, ela sofre com a traição do marido, que se apaixona por uma ex-colega prostituta que ela hospedara em sua casa. Infeliz, ela se suicida e mata o filho com um só tiro. O marido desposa a outra, que logo lhe revela a verdade sobre o passado da ex-mulher, que fora prostituta como ela, e sua amante. Ele se vinga matando-a e espalhando os pedaços do corpo em terrenos abandonados ao redor do café que dirige. Depois se envolve com um golpista e é preso por um golpe mal sucedido. Na prisão, tem uma primeira experiência homossexual. Depois de solto, faz uma operação para mudar de sexo, enriquece prostituindo-se como amante de um rico senhor de 65 anos e adota um órfão, mas é por sua vez assassinado por um rapaz. Mas o filho pequeno mostra-se indiferente ao crime, já que a mãe adotiva não era sua mãe
verdadeira: é o início de um novo ciclo.

Em La Vocation Suspendue (A vocação suspensa, 1977), baseado no romance autobiográfico de Pierre Klossowski, sobre os anos em que este escritor surrealista passou num seminário católico durante a Ocupação nazista da França, é uma parábola crítica que utiliza os rituais católicos para fazer um “acerto de contas” com o universo da política. A partir deste filme, seus filmes se voltaram cada vez mais para a fantasia surrealista, com seus jogos de espelho e suas parábolas enigmáticas.

L’Hypothèse du Tableau Volé (A hipótese do quadro roubado, 1978), escrito por Klossowski, foi esplendidamente fotografado em preto e branco por Sacha Vierny – antigo colaborador de Alain Resnais e Luis Buñuel, responsável pela qualidade única das imagens em preto e branco de Hiroshima, mon amour (Hiroshima, meu amor, 1959) e L’année dernière à Marienbad (O ano passado em Marienbad, 1961); e das coloridas de Muriel, ou le temps d’un retour (Muriel, 1963) e Belle de Jour (A bela da tarde, 1967). O filme de Ruiz foi eleito pelos críticos da revista Cahiers du Cinema um dos dez melhores filmes da década de 1970. A trama desenrola-se como um jogo fascinante sobre o verdadeiro e o falso na arte, com dois narradores (um presente, outro oculto) discutindo possíveis conexões entre uma série de pinturas, envolvendo assassinato e roubo. Em seu esforço de investigação, um dos narradores penetra dentro dos quadros, com suas figuras magicamente se animando e ganhando vida em reproduções tridimensionais.

Sempre interessado no surrealismo, Ruiz realizou o documentário Musée Dalí (Museu Dalí, 1980) e convidou o grande fotógrafo Henri Alekan, que havia assinado a direção de fotografia de vários clássicos franceses, como Anna Karenina (Anna Karenina, 1936), de Julien Duvivier, e La Belle et la Bête (A Bela e a Fera, 1946), de Jean Cocteau, para fotografar seu filme O território (1981), co-produzido por Roger Corman: foi a primeira de uma série de felizes colaborações.

Em Les Trois Couronnes du Matelot (As três coroas do marinheiro, 1983), Ruiz tratou com nostalgia do exílio de um desterrado chileno, com a bela fotografia de Vierny recuperando a dimensão mágica do cinema. La Ville des Pirates (1983) é uma fantasia onírica cheia de terror e suspense, fotografada com mestria por Acácio de Almeida. De passagem pelo Chile pela primeira vez depois do exílio, Ruiz ali rodou Basta la Palabra (1984), logo retornando à Europa. Em 7 faux raccords (1984), podemos ver um pouco do complexo trabalho do fotógrafo Henri Alekan com a atriz Olimpia Carlisi para criar as imagens de colorido mágico que Ruiz queria que seus filmes tivessem. Em Portugal, Ruiz realizou o conto de fadas Les Destins de Manoel (Os destinos de Manoel, 1985). Retornando à França, fez Treasure Island (A ilha do tesouro, 1985), inspirado no romance de Robert Stevenson, sobre um garoto que conhece um pirata de verdade em busca de um tesouro perdido.

Sempre retornando às suas origens teatrais, Ruiz adaptou neste período algumas peças clássicas: Berenice (1983), a partir de Racine; Mémoire des apparences (1987), de Calderon; Richard III (1986), de Shakespeare. Também lançou o interessante, mas cansativo filme-balé moderno Mammame (1986), com o grupo de Jean-Claude Gallotta.

Para o programa Télétests, apresentado por Claude Villers no canaçl FR3 da TV francesa, Ruiz criou um “palíndromo cinematográfico” intitulado Un couple (tout à l'envers) [Um casal (tudo ao contrário), 1980]: uma seqüência silenciosa de dois minutos registra um homem que dorme acordando e levantando da cama à 8h10, quando o sol se levanta em Montparnasse, abraçando a mulher, que prepara um peixe, e saindo de casa. Projetado de trás para frente, acrescentando-se ruídos, música e diálogos, o filme transforma-se radicalmente: agora, um homem entra na casa, é esfaqueado pela mulher e morre na cama, às 20h30, quando o sol se põe em Montparnasse.

Ruiz fez, em seguida, alguns filmes brilhantes, mas excessivos: L’Oeil qui ment (O olho que mente, 1992), que se passa na imaginária Cidade dos Cães, à qual se chega por uma via com próteses de pernas dependuradas nas árvores, e onde uma Virgem Maria aparece nos céus e um sádico marquês diverte-se enterrando pessoas vivas; e Trois Vies et une seule mort (Três vidas e uma só morte, 1996), com Marcelo Mastroiani assumindo três personalidades diferentes, cada uma delas vivendo estranhas histórias. Já Genealogia de um crime (Génealogies d’un crime, 1997) e Le Temps retrouvé (O tempo redescoberto, 1999), baseado no romance de Marcel Proust, caminharam na direção de uma produção mais comercial.

Nem por isso Ruiz se tornou menos artista, como prova a pequena obra-prima que conseguiu unir o experimental e o comercial: Comédie de l’innocence (Crônica da inocência, 2000). No filme, Camille, o filho único de nome ambíguo do casal Ariane (Isabele Huppert) e Pierre, tudo registra com sua câmera digital; no dia de seu aniversário, ao fazer nove anos de idade, ele declara aos pais ser filho de outra mulher. Intrigada, Ariane vai até a casa daquela que seria a verdadeira mãe de seu filho e descobre que ela também acredita que Camille é o filho que ela perdeu quando bebê. O filme avança sobre as areias movediças do delírio e do absurdo, levando a dúvida até à própria mãe, vivida com contida intensidade por Huppert, numa parábola inquietante, dúbia e quase sinistra sobre os limites do real e do virtual.

Raoul Ruiz declarou certa vez que via o mundo como um museu, onde “há obras-primas, depois repetições e ecos”. Se seus filmes são demasiado intelectuais, são também coerentes em seus propósitos: ficções feitas de citações no interior das quais encontramos outras ficções, num labirinto de narrativas tornadas mágicas por fotógrafos geniais (Alekan, Vierny, Almeida), que recorriam a truques, filtros, espelhos, luzes e perspectivas que o cinema industrial não ousava mais utilizar em seu desejo totalitário de realismo, mesmo quando abordava – sem mais nenhuma fantasia – o universo fantástico.

Já Ruiz, mesmo quando dirigia filmes industriais, como o policial Shattered Image (1998), produzido pela Seven Arts Pictures, com William Baldwin e Anne Parillaud, cuidava para que a fotografia colorida deles tivesse um colorido especial, que preservasse o mistério de seu universo, para além dos jogos de espelhos, das tramas labirínticas e dos personagens de motivações ambíguas. No caso deste filme, a fotografia é assinada por outro grande fotógrafo, Robby Muller, que imprimiu às imagens tons azulados. O tratamento especial dado à fotografia é uma forma de minar o deplorável realismo do colorido da maior parte dos filmes industriais. Graças a esses experimentos dentro do cinema industrial, os atuais filmes de super-heróis de Hollywood (300, The Spirit, etc.) passaram a apresentar uma fotografia mais estilizada que deixa menos rançosa a fantasia de gibi que materializam.

Depois de Les âmes fortes (2001), Ruiz fez uma série de documentários: Cofralandes (2002); Miotte (2002); Cofralandes, rapsodia chilena (2002); Medée (2003); Ce jour-là (2003); Une place parmi les vivants (2003); Vertige de la page blanche (2003); Edipo (2004). Retomou a ficção com Días de campo (2004); Responso (2004); Le domaine perdu (2005); Klimt (2006); “Le Don” (episódio de Cada um com seu cinema, 2007); a minissérie de TV La recta provincia (2007); Agathopedia (2008); a minissérie de TV Litoral (2008); La maison Nucingen (2008); El pasaporte amarillo (2009); A Closed Book (2010); o documentário L’estate breve (2010). Toda essa produção passou longe do Brasil...

Ruiz recebeu o título de Docteur Honoris Causa da École Normale Supérieure de Lyon, em 2005, e ministrava cursos de cinema na University of Aberdeen, desde 2007. Em 2010, contraiu um câncer de fígado. Realizou em Portugal a esmerada minissérie de TV em seis episódios, também lançada numa versão para o cinema, Os mistérios de Lisboa (2010), a partir do folhetim de Camilo Castelo Branco. Mais uma vez a trama parte da busca de identidade de um menino aparentemente órfão, que vive num seminário católico e é chamado de bastardo pelos colegas. Ele se obceca em descobrir suas origens e essa busca o leva a diversos países, com histórias dentro de histórias dentro de histórias, em maravilhosa sucessão telescópica de dramas secretos e revelações bombásticas.

Em 2011, Ruiz voltou ao Chile para montar a peça Amledi. Com atraso, a Universidad de Valparaíso concedeu-lhe então o título de Doctor Honoris Causa. Ruiz aproveitou esta nova estada em seu país para aí rodar La noche de enfrente: foi seu último filme, que ele não chegou a finalizar, mas que, esperamos, seja editado segundo suas notas de produção e lançado em sua homenagem. Já não temos a mesma esperança em relação ao drama histórico As Linhas de Torres Vedras (2011), ambientado no século XIX, durante as Invasões Francesas que culminaram com a batalha de Torres Vedras. Estrelado por John Malkovich, o filme seria rodado em Portugal, mas Ruiz deixou-o ainda em estado de pré-produção.

Luiz Nazario

Pós-escrito: Alguns filmes de Ruiz foram lançados em DVD (não há nada, mesmo no exterior, em Blu-ray) no Brasil: La Vocation Suspendue e A hipótese da pintura roubada, clássicos lançados pela Magnus Opus, distribuidora cujos produtos, infelizmente, possuem apresentação e qualidade de imagem em geral abaixo do elevado nível de seu catálogo. No exterior, a coisa melhora um pouco, com destaque para os filmes mais recentes e comerciais do autor, como Genealogias de um crime, O tempo redescoberto e Klimt. Entre os filmes mais antigos, temos Dialogues of the Exiled, da Facets Video, e a excelente edição da Blaq Out, The Films of Raul Ruiz (com os filmes Three Crowns of the Sailor, The Hypothesis of the Stolen Painting e The Suspended Vocation). Esperemos que mais obras do autor, restauradas e com extras que cubram sua vasta produção de curtas, sejam lançadas, preservando a magia da imagem que Ruiz tinha em alta conta.

Alcebiades Diniz Miguel

sábado, 18 de dezembro de 2010

Lápide 018 - Suso Cecchi D'Amico (1914-2010)


 Um dos maiores fenômenos do cinema italiano, a roteirista Suso Cecchi D’Amico, faleceu em Roma aos 96 anos de idade. De 1946 a 2006, ela realizou 118 trabalhos de roteirização de filmes, entre argumentos, diálogos, colaborações e scripts completos. Muitos dos filmes que ela escreveu ou ajudou a escrever resultaram em verdadeiros clássicos do cinema: Ladri di Bicicletta (Ladrões de bicicleta, 1948) e Miracolo a Milano (Milagre em Milão, 1951), de Vittorio De Sica; Bellissima (Belíssima, 1951) e Senso (Sedução da Carne, 1954), de Luchino Visconti; Le Amiche (As amigas, 1955), de Michelangelo Antonioni; Rocco e i suoi Fratelli (Rocco e seus irmãos, 1960), de Visconti; Salvatore Giuliano (O bandido Giuliano, 1962), de Francesco Rosi; Il Gattopardo (O leopardo, 1963), de Visconti; Casanova 70 (Casanova 70, 1965), de Mario Monicelli; Vaghe stelle dell'Orsa (Vagas estrelas da Ursa, 1965), de Visconti; The Taming of the Shrew (A megera domada, 1967), de Franco Zeffirelli; Lo straniero (O estrangeiro, 1967), de Visconti; Metello (Metello, 1970), de Mauro Bolognini; La mortadella (Mortadella, 1971), de Monicelli; Fratello sole, sorella luna (Irmão Sol, Irmã Lua, 1972), de Zeffirelli; Ludwig (Ludwig - A paixão de um rei, 1972); Gruppo di famiglia in un interno (Violência e paixão, 1974) e L’innocente (O inocente, 1976), de Visconti; Jesus of Nazareth (Jesus de Nazaré, minissérie de TV, 1977), de Zeffirelli.

Entrevistada, em 2006, por Mikael Colville-Andersen, Cecchi d'Amico disse-lhe que “roubava” suas personagens e suas situações da literatura, especialmente de seu autor favorito, Dostoievski: “Rocco [de Rocco e i suoi Fratelli] é o Príncipe. Claro que é diferente, mas veio de Dostoievski.” Contudo, mesmo quando adaptava originais literários ou se inspirava na literatura para criar seus personagens e suas situações, Suso Cecchi D’Amico tinha sempre em mente que o que importava num roteiro cinematográfico era sua linguagem visual. Em seus roteiros, as palavras apenas complementavam as imagens, que serviam estritamente à narrativa. Nesse sentido, ela foi uma verdadeira autora: o grande cinema italiano do fim dos anos de 1940 ao fim dos anos de 1970 – que conhece os esplendores do neo-realismo, do moderno cinema autoral e do cinema político – seria muito menor sem a sua contribuição.

Com Mario Monicelli e Tonino Guerra, Suso Cecchi D’Amico foi indicada ao Oscar de Melhor Roteiro por Casanova 70 e, em 1994, ganhou o Leão de Ouro pelo conjunto da obra no Festival de Veneza. Um de seus últimos trabalhos de destaque foi o roteiro do documentário sobre o cinema italiano Il Mio Viaggio in Itália (Minha viagem à Itália, Itália / EUA, 1999), de Martin Scorsese. Apaixonada por sua arte, Suso Cecchi D’Amico continuou trabalhando, sem descanso, até o fim da vida, escrevendo os argumentos e roteiros de Come quando fuori piove (minissérie de TV, 2000), de Monicelli; Il cielo cade (2000), de Andrea e Antonio Frazzi; Raul - Diritto di uccidere (2005), de Andrea Bolognini; Le rose del deserto (2006), de Mario Monicelli; e L’inchiesta (Missão romana, 2006), de Giulio Base.

Luiz Nazario

domingo, 4 de julho de 2010

Lápide 017 - Werner Schroeter (1945-2010)

Diretor de teatro, de ópera e de cinema, morto de câncer aos 65 anos a 12 de abril de 2010, em Kassel, onde havia se internado para uma operação, Werner Schroeter sentia-se completamente identificado com Maria Callas. Começou rodando curtas e médias metragens que já manifestavam a nova sensibilidade surgida no bojo dos movimentos estudantis e que seria a marca do Novo Cinema Alemão: Verona (1967, 10’, p&b); Virginia’s Death (1968, 9’, p&b); Übungen mit Darstellern (1968, CM, p&b) Paula - Je reviens (1968, CM, cor); Mona Lisa (1968, CM, cor e p&b); Maria Callas Porträt (1968, 17’, p&b); La morte d'Isotta (1968, 50’, cor); Himmel hoch (1968, 1’, p&b); Grotesk - Burlesk - Pittoresk (1968, CM, cor e p&b); Faces (1968, 20’, p&b); Callas Walking Lucia (1968, 3’, p&b); Callas-Text mit Doppelbeleuchtung (1968, 5’, p&b); Aggressionen (1968, 22’, p&b); Argila (1969, 36’, cor); Neurasia (1969, 41’, p&b).

Seu primeiro longa-metragem foi Nicaragua (1969, 80’, p&b), mas Eika Katappa (Eika Katappa, 1969, 144’, cor e p&b), uma paródia de óperas famosas, é que tornou Schroeter conhecido junto ao círculo de críticos e cinéfilos, marcando o início de uma das mais singulares carreiras de cineastas. O tema exclusivo de sua obra é Eros que, na civilização tecnológica, sobrevive apenas na recusa e no silêncio.
O símbolo que Schroeter elegeu para designar a impossibilidade do amor universal foi a lágrima.

Em Salome (Salomé, 1971, 81’, cor, TV), a estilização atinge seu máximo para denunciar as forças políticas que se movem em direção ao crime: saída da peça de Oscar Wilde, a Salomé (Mascha Rabben) dança diante das ruínas do templo de Baalbeck encarnando uma juventude contemporânea que usa o poder permissivo para satisfazer seus caprichos. Herodes (Magdalena Montezuma) é envolvido numa trama de desejos perversos, até permitir que Salomé beije os lábios, já frios, da cabeça arrancada ao profeta Jochanaan (Thomas von Keyserling), posta numa bandeja de prata. O crime vai de encontro à vontade inflamada da Rainha Herodias (
Ellen Umlauf), que goza a morte do profeta que predizia a ruína do reino decadente.

Em seus filmes - de Der Tod der Maria Malibran (A morte de Maria Malibran, 1972, 104’, cor), uma fantasmagoria narcísica sobre a história real de uma cantora lírica que desafia a necessidade e morre cantando; passando por Willow Springes (Willow Springes, 1973, 78’, cor), enigmática parábola sobre três mulheres que vivem num deserto, massacrando os homens que passam por ali; Johannas Traum (1975, 30’, cor); Der schwarze Engel (1975); Goldflocken (1976, 163’, cor); Neopolitanische Geschichten (Os irmãos napolitanos, 1978, 136’, cor), sobre dois irmãos que, num quarteirão pobre de Nápoles, escolhem dois caminhos diferentes para suas vidas - o rapaz entrando para o PCI, a moça para a Igreja católica; Weiße Reise (1980, 55’, cor) - até Palermo oder Wolfsbur (De Palermo a Wolfsburg, 1980, 173’, cor), sua obra-prima, premiada com o Leão de Ouro no Festival de Berlim, um filme subversivo contra as condições de trabalho impostas a um jovem siciliano que, arrancado de suas tradições católicas e transportado para a terra da Volkswagen, é conduzido à violência pelo choque da aculturação - aqueles personagens que conservam o rosto humano trazem sempre nos olhos uma lágrima.

Para seus delírios arrebatadores, Schroeter contava com uma atriz extraordinária: Magdalena Montezuma, capaz de sofrer todas as metamorfoses em seu corpo e de viver todas as nuances de um sentimento: de uma cantora dos tempos do nazismo em Der Bomberpilot (1970, 65’, cor, TV) ao rei Herodes de Salome e ao rei Macbeth em Macbeth (1971, 60’, cor, TV). A imprensa européia tratava Werner Schroeter – um homem de feições e gestos delicados, olhos inteligentes, voz suave e longos cabelos – como um artista decadente. Contudo, a decadência é revolucionária quando reflete o esplendor de um mundo perdido, cuja simples lembrança faz empalidecer os arautos do mundo triunfante, com seus pequenos brilhos empanados. Por isso Werner Herzog encomendou-lhe a encenação da ópera que abre Fritzcarraldo, e na qual Sarah Bernhardt é representada por um travesti borrado de pintura.

Ao contrário de muitos cineastas homossexuais que fazem filmes “viris”, Werner Schroeter fazia filmes deliberadamente “afetados”: na posição da câmara; na duração de cada cena; na escolha dos cenários, dos figurinos e da maquilagem; na granulação da fotografia; no uso da teleobjetiva; na concentração da ação num espaço fechado, onde tudo delira; na composição das personagens e na interpretação carregada ou sublimada que exigia de seus intérpretes, quase sempre mulheres, mesmo para os papéis masculinos, Schroeter integrava sua homossexualidade no fluxo das imagens, compondo a cada novo filme uma expressão plástica e direta de seu desejo.

Mesmo em Generalprobe (Ensaio geral, 1980, 90’), ao documentar o Festival de Nancy, Schroeter só retém da massa de espetáculos as imagens que alimentam sua libido: as representações do amor, da solidão e da morte; o lirismo patético de performers (
Kazuo Ôno, Pina Bausch, Pat Oleszko) que haviam atingido, através de uma técnica perfeita, alguma forma intemporal de êxtase. A certa altura do filme, Schroeter declara amor a um amigo, “justificando” o ódio homofóbico com que era tratado pela imprensa conformista.

Tag der Idioten
(O dia dos idiotas, 1981, 107’, cor) é uma decepção: Schroeter parecia ter perdido o rumo. Carol Schneider (Carole Bouquet) leva uma vida sem sentido com o amante Alexander e decide se internar num hospício: prefere viver ali que no mundo real, apesar de todos os seus horrores, o que a leva no final, sem vislumbrar saída entre a loucura e a realidade, a cometer o suicídio.

Schroeter
realizou nova extravagância em Liebeskonzil (O concílio do amor, 1982, 92’, cor), adaptação da peça de Oskar Panizza, que se passa no céu, no inferno e na corte do Papa Alexandre VI, no ano de 1495. O filme é servido por uma maquiagem e uma iluminação expressionistas, onde as cores carregadas operam divisões de espaço perfeitamente delimitadas – durante um beijo, uma língua avermelhada toca outra azulada, sem que se fundam as luzes coloridas.

Decidido a incomodar os ditadores do mundo, Schroeter desmascarou, nas Filipinas, o regime de Emelda e Ferdinand Marcos em Der Lachende Stern (A estrela sorridente, 1983, 110, cor). O esteticismo do diretor fez-se presente na imagem mais bela do filme: uma brincadeira de criança com palitos quebrados e justapostos que, molhados, abrem-se como uma estrela. Além dessa imagem recorrente, Schroeter revela sua sensibilidade barroca filmando flores luminosas pontuando algumas seqüências; uma dança do charuto; um balé erótico de homossexuais numa boate; e incluindo na trilha sonora Elvis Presley e a própria Imelda Marcos cantando “Feelings”, do compositor brasileiro Morris Albert. Nesses momentos, Schroeter mostra-se um discípulo de Pier Paolo Pasolini, tão fascinado pela santidade que termina seu filme com a imagem da Pietà, onde o Cristo é representado por si próprio, como a confessar que o engajamento da arte é o martírio do artista e que ele, como Cristo, aceita esse martírio.

Em outro documentário poético, De l’Argentine (Da Argentina, 1985, 92’, cor), Schroeter assinou nova denúncia das ditaduras, tendo por alvo o sangrento regime do general Videla – não sem demorar-se nas imagens fetichistas e teatrais de Eros, promotoras do êxtase estético, sua paixão e razão de ser.

O tema do martírio retorna em Der Rosekönig (O rei das rosas, 1986, 106’, cor), rodado em Sintra e inspirado no poema “O corvo”, de Edgar Allan Poe: numa mansão portuguesa à beira-mar uma mulher (Magdalena Montezuma) agoniza enquanto seu filho adolescente (Mostefa Djadjam) cultiva rosas no jardim; na granja, o belo jardineiro Fernando - interpretado por Antonio Orlando, que foi um dos rapazes imolados em Salò de Pier Paolo Pasolini - prepara-se para expiar com violência seus misteriosos pecados; Montezuma, a atriz predileta de Schroeter, que agoniza e morre no filme, morreu de câncer logo após as filmagens desse conto de fadas perverso, carregado de beleza e de crueldade.

Depois do documentário Auf der Suche nach der Sonne (1986, 60’, cor, doc, TV), sobre Ariane Mnouchkine e seu grupo Théâtre du Soleil, Schroeter dedicou-se mais ao teatro e à ópera. Seus últimos filmes foram: Malina (1991, 125’, cor), adaptado da novela de
Ingeborg Bachmann, com Mathieu Carrière e Isabelle Huppert; Poussières d'amour - Abfallprodukte der Liebe (1996, 130’, cor), um filme-performance onde Elisabeth Cooper acompanha ao piano algumas divas favoritas de Schroeter, hospedadas na arruinada abadia medieval de Royaumont, nos arredores de Paris, com uma pessoa de sua escolha, para falar de amor e canto e trabalhar uma ária escolhida pelo diretor; Die Königin - Marianne Hoppe (2000, 101’, cor), documentário sobre a veterana atriz, desde o cinema nazista, Marianne Hoppe; Two (França / Alemanha / Portugal, 2002, 121’, cor), espécie de “autobiografia surrealista” escrita para Isabelle Huppert, que aí interpreta duas mulheres, aparentemente gêmeas, mas que se desconhecem, e que representariam o diretor; e This Night (2008, 110’, cor), baseado na novela de Juan Carlos Onetti.

Um viajante internacional desde quando cursava as universidades de Bielefeld e Heidelberg, Werner Schroeter valorizou a paisagem em seus poemas cinematográficos: o deserto de Mojave em Willow Springs; o sul da Itália em Il Regno di Napoli e Palermo oder Wolfsburg; o templo libanês de Baalbeck em Salome; as Filipinas em Der lachende Stern; Buenos Aires em De l’Argentine; Sintra em Der Rosekönig; Paris em Poussières d'amour - Abfallprodukte der Liebe; Nancy em Generalprobe... Mas de todas as paisagens, nenhuma é tão bem explorada nos filmes de Werner Schroeter quanto aquela que é a mais bela de todas as paisagens que existem no mundo: o rosto humano.

WERNER SCHROETER EM DVD:
Pack Werner Schroeter (3 discos) com: Duas (Two); Esta Noite (Diese Nacht); O Rei das Rosas (Der Rosekönig). Em português.
Nuit de chien (Diese Nacht). Em francês.
Tonight (Diese Nacht). Em francês e inglês.
Poussières d'amour (Abfallprodukte der Liebe). Em francês.
Nel regno di Napoli (Neapolitanische Geschichten). Em italiano.

WERNER SCHROETER EM LIVRO:
Werner Schroeter, de Sabina Dhein. Em alemão.
Werner Schroeter. de Werner Schroeter. Em alemão.

Luiz Nazario

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Lápide 016 - Dan O'Bannon (1946-2009)


Nascido no Missouri, Dan O'Bannon faleceu hoje, 18 de dezembro de 2009, após breve agonia. Talento versátil nas mais diversas áreas da produção do fantástico cinematográfico, acabou esquecido e deixado para trás dentro de uma indústria do cinema hiper-especializada e focada não tanto nas imaginativas soluções narrativas e visuais mas no impacto veloz de imagens bem ou mal construídas por CGI.

O'Bannon ficou razoavelmente conhecido por suas parcerias com diretores do cinema fantástico que, nos anos 1970, buscavam a transcendência dos batidos gêneros – terror, SF, fantasia, etc. – que soavam como camisa de força limitadora. Com John Carpenter, trabalharia como roteirista, supervisor de efeitos especiais e ator em Dark Star (idem, 1973), estranho objeto fílmico entre a comédia surrealista e a SF tradicional. Depois, trabalharia pioneiramente com CGI em Star Wars: Episódio IV - Uma Nova Esperança (Star Wars: Episode IV - A New Hope) de George Lucas, projetando algumas das cenas mais emblemáticas daquele filme (como a destruição da Estrela da Morte, aliás uma idéia que parece ao menos sugerida por Dark Star), o melhor da longa e burocrática série de Lucas. Sua criação mais famosa, contudo, seria a mescla de SF e terror gótico de Alien, o Oitavo Passageiro (Alien, 1979); o sombrio, claustrofóbico e sujo universo da nave Nostromo e das criaturas que crescem como bebês – ou vermes – na barriga de um hospedeiro perduraria e efetuaria revolução no universo de assepsia científica da SF cinematográfica. O'Bannon escreveria ainda o roteiro do brilhante Força Sinistra (Lifeforce, 1985), de Tobe Hooper e trabalharia em duas adaptações de Philip K. Dick, O Vingador do Futuro (Total Recall, 1990), de Paul Verhoeven, e Assassinos Cibernéticos (Screamers, 1995), de Christian Duguay.

Talvez por isso O'Bannon tenha sido contatado por Alejandro Jodorowsky: seu nunca filmado Dune contaria com aquele pioneiro da CGI para cuidar dos efeitos visuais e de computação gráfica. Como O'Bannon, Jodorowsky imaginava a SF como um campo simbólico e alegórico dotado de infinita liberdade. Infelizmente, tal visão não predominaria, embora, diluída, surja como imagens de pesadelo – máquinas exterminadoras de planetas, criaturas alinígenas que brotam de corpos humanos em explosões fálicas, mescla apocalíptica de fantasia científica e horror primitivo – no cinema fantástico atual.

Alcebiades Diniz Miguel

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Lápide 015 - Harold Pinter (1930-2008)


O dramaturgo e roteirista britânico Harold Pinter, que também atuou como ator, diretor e autor de teatro e teledramas, vencedor do Nobel de Literatura 2005, morreu aos 78 anos de idade, com um câncer (que começou no esôfago e ganhou o fígado). A terrível doença (“meu inferno pessoal”, declarara) já o impedira de ir à recente cerimônia que o empossou como Doutor “Honoris Causa” na Central School of Speech and Drama de Londres.

Filho de imigrantes judeus que chegaram à Inglaterra no século XIX, através de Portugal, perseguidos desde a Rússia e a Polônia, Pinter atribuía à sua própria vivência do anti-semitismo na juventude sua decisão de tornar-se um dramaturgo. Integrante da angry generation britânica, assombrando pelo Holocausto e pela ameaça atômica da Guerra Fria, Pinter escreveu peças teatrais que primavam pela crítica social, o absurdo das situações e a sensação de uma ameaça iminente, como The Birthday Party (“A festa de aniversário”, 1958).

Pinter escreveu 25 roteiros para o cinema, desde a versão de sua própria peça The Caretaker / The Guest (“O convidado”, 1963), dirigida por Clive Donner, fotografada por Nicolas Roeg e produzida de forma independente por um consórcio de celebridades, incluindo Richard Burton, Elizabeth Taylor, Peter Sellers, Noel Coward e Leslie Caron; e incluindo alguns projetos não realizados, como A tragédia de Rei Lear (2000), sua adaptação da peça de William Shakespeare, encomenda do ator Tim Roth, que até hoje não foi filmado. E ele se orgulhava de todos os filmes que escrevera, sendo que o único do qual retirara seu nome dos créditos foi The Remains of the Day (“Vestígios do dia”, 1993), de James Ivory, que teve seu roteiro inteiramente reescrito.

De todos os filmes escritos por Pinter, destacam-se três, realizados pelo cineasta Joseph Losey: o inquietante The Servant (“O criado”, 1963), a partir da novela de Robin Maugham, em que um patrão de caráter fraco vê-se pouco a pouco seduzido, subjugado e humilhado pelo próprio criado, que se revela progressivamente ambicioso, sádico, dominador; Accident (“Estranho acidente”, 1967), a partir da novela de Nicholas Mosley, sobre um triângulo amoroso que termina de forma violenta, num desastre de automóvel misteriosamente simbólico; e o perturbador The Go-Between (“O mensageiro”, 1970), adaptado da novela de L. P. Hartley sobre um menino usado como correio pela exuberante prometida (Julie Christie) do tio aristocrata numa ligação clandestina que ela mantém com um empregado da fazenda vizinha (Alan Bates): sofrendo a frustração de seu primeiro amor, o adolescente termina conduzindo os amantes, que ele surpreende em coito na estrebaria, a um trágico desenlace, pouco antes do início da Primeira Guerra Mundial. Outro roteiro que Pinter escreveu para Losey, uma adaptação de O tempo reencontrado, de Marcel Proust, não chegou a ser filmado.

Ainda que sem a mesma vigorosa estranheza e ambigüidade de sua parceria com Losey, Pinter escreveu outros roteiros tão elegantes e frios, como os de The Last Tycoon (“O último magnata”, 1976), último filme de Elia Kazan, sobre um grande produtor hollywoodiano (Robert de Niro) que decai perseguindo uma garota que lhe recorda um amor do passado; e onde Jack Nicholson tem um pequeno papel, e Robert Mitchum, Tony Curtis, Ray Milland, Dana Andrews e Anjelica Huston aparecem em cameo roles; The French Lieutenant's Woman (“A mulher do tenente francês”, 1981), de Karel Reisz, a partir do romance de John Fowles, com Maryl Streep e Jeremy Irons; Betrayal (1983), de David Hugh Jones, onde Pinter ficcionou sua própria traição conjugal com a radialista Joan Bakewell no início dos anos de 1960; Turtle Diary (“Diário da tartaruga”, 1985), de John Irving, com Glenda Jackson; The Comfort of Strangers (“Uma estranha passagem em Veneza” / “Estranha sedução”, 1990), de Paul Schrader, versão de O prazer do viajante, de Ian McEwan, e onde um casal de sadomasoquistas (Helen Mirren e Christopher Walken) atrai para seu sombrio palácio um jovem casal (Natasha Richardson e Rupert Everett) em passeio romântico e turístico em Veneza, envolvendo-os numa teia de sedução até a morte; The Trial (“O processo”, 1993), de David Hugh Jones, sóbria adaptação do romance de Franz Kafka; e Sleuth (2007), de Kenneth Branagh, seu último roteiro cinematográfico, revivendo a peça de Anthony Shaffer adaptada pelo autor na primeira versão em Sleuth (“Jogo mortal”, 1972), último filme do veterano Joseph L. Mankiewicz.

Tanto em suas peças quanto em seus roteiros Pinter criava uma realidade aparentemente banal pouco a pouco transfigurada em mistério pela sutil atmosfera de perversão que perpassava os diálogos cortantes e os momentos pesados de silêncio, com uma aguda consciência de classe projetada na alma dos personagens. A atenção aos detalhes transformava-se freqüentemente em verdadeira obsessão de Pinter: durante os ensaios de uma de suas peças, que ele mesmo encenava, implicou com um ator cujo papel limitava-se a ficar num canto sem se mexer, com um capuz na cabeça, e exigiu que o ator fosse substituído por outro, pois aquele “não estava bem no papel”. O típico humor negro inglês também nunca deixou de fazer parte de seu universo.

Depois de escrever 29 obras teatrais, Pinter encerrou a carreira de dramaturgo com um drama musical, Voices, de 29 minutos, escrito em colaboração com o compositor James Clarke: uma narrativa fragmentária sobre o “inferno que todos compartilhamos aqui e agora”, enfocando violentos abusos de prisioneiros inocentes por seus torturadores contra projeções em tela de fundo de imagens de Estados totalitários não identificados. A mente e a obra de Pinter eram ocupadas pelas feridas na alma causadas tanto pelos jogos do desejo nas relações sexuais e conjugais quanto pelos jogos do poder nas relações entre assassino e vítima, torturador e torturado, senhor e escravo.

Eterno enragé (em 1949 negou-se a prestar o serviço militar por objeção de consciência; em 1996, rechaçou o título de cavaleiro que lhe oferecera o governo de John Major), nos seus últimos anos Harold Pinter alinhou-se com a “esquerda” oficial, cada vez mais desorientada após a queda do Muro. Prestou solidariedade ao ditador Fidel Castro; assinou o manifesto “Se eu fosse venezuelano, votaria em Hugo Chávez”; associou-se ao infame Comitê Internacional de Defesa de Slobodan Milosevic apelando para a libertação do genocida diante da “injustificável” intervenção da NATO na Iugoslávia; protestou contra o alinhamento da Inglaterra com o governo Bush durante a Guerra do Iraque pedindo a retirada das tropas britânicas; e, numa de suas raras manifestações em público, durante a marcha pacifista de Londres em 2003, bradou: “Os Estados Unidos é um monstro desenfreado (...) um país governado por um bando de lunáticos criminosos com Tony Blair como seu assassino cristão mercenário”.

Americana igualmente opositora dos abusos da guerra e vítima de um longo câncer, Susan Sontag manteve até o fim da vida, ao contrário de Pinter, o senso crítico e autocrítico: ela qualificou com razão de nonsense o discurso antiamericano de Pinter no festival literário de Edimburgo em 2002, onde ele classificou os EUA de “Império do mal” e concluiu que 11/09 refletia “o que o mundo pensa sobre os EUA, o país mais poderoso e odiado do planeta”. “Dizer que isso é o que todos pensam dos EUA”, observou Sontag, “é estúpido. Isso é metade do que as pessoas pensam dos EUA. A outra parte é a mais abjeta adoração a essa cultura popular terrível que corrompe o planeta. Minha visão talvez seja simplista, mas a de Pinter é ainda mais. Ele é um demagogo. O imperialismo americano é amado e odiado”.

Luiz Nazario

domingo, 9 de novembro de 2008

Lápide 014 - Desmond Llewelyn (1914-1999)

Desmond Llewelyn, como Mr. Q (primeiro à esquerda), em A View to a Kill (1985)

Desmond Llewelyn começou sua carreira de ator no teatro, em 1939, interpretando um fantasma na comédia Ask a policeman, de Will Hay. Este primeiro papel já era talvez uma premonição de seu destino: aos 80 anos de idade, o ator retornou ao noticiário por ter sido mais uma vez escalado para interpretar, em Goldeneye, o 17º filme da série de James Bond, produzido por Michael Wilson e dirigido por Martin Campbell, o personagem que o celebrizou: Mr. Q, o cientista que vive suprindo o espião inglês de novos equipamentos secretos e artimanhas tecnológicas.

Como Mr. Q, Desmond Llewelyn viajava pelo mundo para promover cada nova produção da série, onde geralmente aparecia por um minuto ou dois. Ele carregava sempre consigo uma maleta de couro preta. A maleta era de boa qualidade mas, com o uso, tornou-se puída, estragada. Mantida sem cuidados, ela parecia refletir o estado de seu dono; não apenas seu estado de espírito, mas também seu estado físico, pois Desmond tinha as pernas e as mãos inchadas e não fazia questão de demonstrar, nem de longe, uma aparência jovial.

Diante de Desmond Llewelyn, os homens de imprensa não sabiam o que dizer, o que perguntar. Por isso ele se previnia e também trazia consigo uma antologia de suas aparições na tela, “para refrescar suas memórias”, como dizia aos jornalistas. Era de fato uma medida necessária. Em toda a série 007, as intervenções de Mr. Q somavam cerca de dez minutos, e isto porque a colagem que Desmond projetava incluía as cenas subseqüentes à sua aparição nos filmes, aquelas que se seguiam à ordem dada pelo Chefe para que Mr. Q calasse a boca, e nas quais ele não era mais visto em cena.

Mesmo depois de ver essa montagem, os jornalistas ainda hesitavam em perguntar alguma coisa a Desmond. Então, segurando um copo de uísque, o velho ator conclamava: “Vocês vão perguntar alguma coisa ou vão ficar aí, bebendo os seus uísques?”. Depois de serem assim constragidos a demonstrar curiosidade a respeito de um velho ator, os jornalistas, que só tinham se ocupado, por exemplo, da jovem e bela Fiona Fullerton, uma das vilãs de um dos últimos James Bond, resolviam voltar suas atenções para Desmond Llewelyn.

O velho ator insistia em que estava muito velho. Quando surgia a pergunta inevitável: “O senhor tem projetos para novos filmes?”, a resposta já amargava em sua boca: “Agora estou velho demais.”. Diante do constrangimento geral, Desmond resolvia ser mais sociável e elaborava uma explicação: “Há muitos papéis que eu gostaria de ter interpretado, mas agora estou muito velho para todos eles”. O velho ator sentia que já havia dito tudo o que tinha a dizer e ia então buscar sua maleta de demonstração, largada num canto da sala.

A maleta tinha um dos fechos quebrado e seu mistério durava apenas um instante. Desmond Lleweyn carregava dentro dela uma coleção de bobagens usadas nos filmes de 007: um óculos especial de raio-X que não passava de um simples óculos escuro; o primeiro modelo de “bip”, lançado num dos filmes de 007; o primeiro projeto de câmara submarina, igualmente “inventado” por Mr. Q; uma caneta cujo truque não podia mais encantar ninguém, porque já fora estragada por crianças; e uma faca de mola, dessas usadas em teatro, que Desmond afirmava não pertencer a James Bond, mas ser uma arma sua, para “esfaquear jornalistas que fazem perguntas irritantes”, ele sussurrava, para quem quisesse ouvir.

Desmond Llewelyn ia tirando todas essas bugigangas da maleta e exibindo cada uma delas maquinalmente, sem o menor entusiasmo. Esses objetos o diminuiam aos seus próprios olhos. Ele sabia o quanto valiam. Llewelyn via-se, na velhice, reduzido a representar um menino – ele, que já fora, no teatro inglês, um herói de William Shakespeare... Ele, que engajdo no exército inglês em 1939, combatera os nazistas e fora feito prisioneiro na França em 1940, permanecendo prisioneiro até o fim da guerra, ou seja, por cinco anos. Por isso ele desprezava aquelas coisas “modernas” usadas por Sean Connery, George Lazenby, Roger Moore, Timothy Dalton e Pierce Brosnan, na pele de James Bond. Ele as tomava e as jogava sobre a mesa, para exibi-las à imprensa, e depois as guardava na maleta aos solavancos, enfiando tudo de qualquer jeito, enquanto elogiava, sarcasticamente, o caráter de antecipação e autenticidade daquela tralha.

Fazia isso por dinheiro e pelo prestígio que adquiriu naquele eterno cameo role. A maleta o sustentava na velhice, era o seu ganha-pão, e o seu show particular. Ela o incomodava, e ao mesmo tempo o exaltava: aposentado, aproveitava essas oportunidades que a série James Bond lhe oferecia para rodar o mundo por conta dos produtores de cada novo filme, promovendo-o a seu modo. Mas Desmond Llewelyn também gostaria de ter interpretado outros papéis, e de ter sido reconhecido como um grande ator dramático. O mercado é cruel: não foi Shakespeare, mas Ian Fleming, quem lhe proporcionou esses contatos com a imprensa, o público e o mundo.

Na pele de Mr. Q, Desmond Llewelyn voltava a ser o fantasma de sua primeira experiência teatral. E, no entanto, Desmond encontrava uma certa grandeza nessa humilhação consentida. Para si mesmo ele criara um personagem absurdo, que poderia ter saído da imaginação de um Samuel Beckett, misto de caixeiro-viajante e Jesus Cristo, que se vingava contra a sorte injusta carregando sua maleta 007 como se carregasse uma cruz. Havia algo de sagrado na via crucis de Desmond Llewelyn. A jovem starlet que o acompanhava, ainda perseguindo suas ilusões, sentia pelo velho ator algo entre a piedade e o respeito. E até o lembrava, com zelo maternal, de mostrar uma das quinquilharias que jazia no fundo da maleta, e que ele havia esquecido de exibir, ou nem quisera pegar: um carrinho de James Bond, um desses modelos miniaturas que se encontram à venda em qualquer lojinha de brinquedos.



Desmond Llewelyn morreu em 1999 num acidente automobilístico, um dia antes do lançamento londrino de sua biografia: Q: The Biography of Desmond Llewelyn. Na série Bond, o comediante John Cleese assumiu o papel de Mr. Q em Die Another Day (2002), mas as aparições do personagem sofreram uma solução de continuidade: o inventor amalucado e visionário que Desmond Llewelyn viveu em dezessete filmes da série Bond foi aposentado na reinação mais vulgar e brutal do 007 de Daniel Craig, em Casino Royale (2006) e Quantum of Solace (2008). No cinema, como na realidade, os produtos da inteligência – mesmo daquela estritamente prática, sorrateira e tecnológica, que os gadgets de Mr. Q manifestavam – vão ficando cada vez mais fora de moda...

Luiz Nazario

domingo, 15 de junho de 2008

Lápide 013 - Sydney Pollack (1934-2008)


Nascido de Indiana, em 1934, o cineasta (e também produtor e ator) Sydney Pollack faleceu na Califórnia, cercado de parentes e amigos, em decorrência de um câncer, a 26 de maio de 2008, aos 73 anos. Assim como Robert Altman, Pollack começou sua carreira de diretor na televisão, dirigindo, nos anos de 1960, dezenas de episódios para séries como Ben Casey, The Fugitive e The Alfred Hitchcock Hour, além de telefilmes para o Kraft Suspense Theatre e o Bob Hope Presents the Chrysler Theatre. Em 1961, Pollack conheceu o jovem ator Robert Redford durante as filmagens de Obsessão de matar (War Hunt, 1962), de Denis Dunders, filme no qual atuavam juntos: além de amigo pessoal, Redford se tornará o ator-fetiche do cineasta.

Depois de realizar um primeiro longa-metragem em 1965, Pollack se destacou com Essa mulher é minha (This Property Is Condemned, 1966), drama existencial baseado numa peça de um ato de Tennessee Williams, roteirizada por Francis Ford Coppola, Fred Coe [que dirigiu apenas dois filmes, ambos notáveis: Mil palhaços (A Thousand Clowns, 1965) e Uma garota avançada (Me, Natalie, 1969)], Edith Sommer e David Rayfiel. O filme descreve a vida num bordel de ferroviários, numa cidadezinha próxima a New Orleans, e onde a inescrupulosa senhora Hazel Starr (Kate Reid, em atuação brilhante), explora a própria filha, Alva (Nathalie Wood, em seu melhor papel), “a atração principal do local”, segundo a irmã mais nova, Willie (Mary Badham), que desenrola a trama num longo flash-back. O forasteiro Owen Legate (Robert Redford), que percorre cidadezinhas para demitir empregados da ferrovia, em recesso com a crise que abala a economia nos anos de 1930, hospeda-se no bordel; e desperta a paixão de Alva, mas a mãe devassa, cínica, materialista, tem outros planos para a jovem, destruindo todas suas possibilidades de felicidade. O universo malsão de Tennessee Williams é suavizado pela visão politizada de Pollack; mas o melhor do filme deve-se ao conflito típico criado por aquele dramaturgo em suas obras, entre o princípio de prazer, representando por uma personagem decadente e idealista, que sonha os mais lindos sonhos, enterrada na lama, e o princípio de realidade, encarnado num macho belo e frio, sexualmente prático, indiferente aos finos bordados da alma humana. Do ponto de vista cinematográfico, dois planos merecem destaque: quando a imagem se desprende, durante a fuga de Alva, da janela do trem, até abarcar toda a planície que ele percorre e, no final, quando a câmara se afasta de Willie e sobrevoa os trilhos, a longa distância. Estes extraordinários travellings panorâmicos aéreos foram uma proeza técnica do fotógrafo James Wong Howe, quando não havia computadores para criar tais efeitos. Destaque ainda para a bela canção Wish Me a Rainbow, de Jay Livingston e Ray Evans, que abre e fecha o filme:

Wish me a rainbow and wish me the stars
All this you can give me wherever you are
And dreams for my pillow and stars for my eyes
And the masquerade ball where our love wins first prize
Wish me red roses and yellow baloon and caress us whirling to gay dancing tunes
I want all these treasures the most you can give
So wish me rainbow as long as I live
All my tomorrows depend on your love

So wish me a rainbow above.


O filme seguinte de Pollack, Revanche selvagem (The Scalphunters, 1968), é um faroeste satírico, politizado e anti-racista. Não resistimos a transcrever sua sinopse tal como foi divulgada em seu DVD brasileiro, verdadeira pérola do WorldLingo:

"Se pode ser dito que um western tem alguma coisa para todo mundo, com certeza é Revanche Selvagem, diz o Motion Picture Herald sobre esta bufante e apimentada aventura cheia de humor e comentários satíricos sobre as relações entre as raças. Em uma performance verdadeiramente em polvorosa, Burt Lancaster interpreta Joe Bass, um peleiro de fronteira casca-grossa. A carga de peles conquistada com muito trabalho duro por Joe é capturada por um bando de Kiowas não muito amigáveis, que a querem trocar por um escravo fugido que capturaram. Como o educado e criado na cidade Joseph, Ossie Davis está tão determinado a conseguir sua liberdade quanto Lancaster a conseguir as suas peles de volta. Junte tudo isso com um bando de predadores escalpeladores liderados por Telly Savalas junto a uma Shlley Winters mascadora de fumo e o inferno está liberado! Misturando fortes elementos de ação com uma comédia de farsa sem tamanho, o roteirista William Norton e o diretor Sidney Pollack [...] foram vitoriosos em produzir um entretenimento para todos os gostos."

Logo ocorreu o maior momento de cinema de Pollack: A noite dos desesperados (They Shoot Horses, Don’t They?, 1969), um magistral filme político, baseado na novela de Horace McCoy sobre a crise americana da Grande Depressão iniciada com o Crack da Bolsa de Nova York em 1929, drama revivido para evocar a nova crise americana aberta com a Guerra do Vietnã. Num dos maiores desempenhos de sua carreira como a impetuosa Gloria Beatty, Jane Fonda criou uma personagem inesquecível com sua determinação de vencer uma maratona de danças por volta de 1932, arrastando o desanimado parceiro Robert Syverton (Michael Sarrazin) até a vitória. Mas é uma vitória de Pirro, pois toda a determinação dos concorrentes é previamente quebrada por um sistema perverso, viciado, que Gig Young, como Rocky, o condutor sem ética do certame, encarna à perfeição. Um sistema que chega às raias da loucura ao obrigar os vencedores a pagar todas as despesas do concurso, nada sobrando para eles mesmos. Com este filme violento, histérico, um dos melhores manifestos cinematográficos antiamericanos da esquerda americana, Pollack entrou para a História do Cinema. Já seus filmes seguintes não tiveram a mesma força nem o mesmo impacto, ainda que tenham conquistado a crítica e o público.

Em Mais forte que a vingança (Jeremiah Johnson, 1972), Robert Redford encarna o personagem real de Jeremiah Johnson, soldado do exército americano que escapa da guerra mexicana no final do século XIX para viver como eremita nas montanhas, entrando em conflito com os nativos ao violar um santuário. A deserção do Exército estava na ordem do dia nas fileiras pacifistas americanas que marchavam em Washington e o filme pretendia assim, alusivamente, revelar uma dimensão política militante sob a aparente “alienação” de seu personagem de pioneiro desbravador em belíssimas paisagens naturais.

Nosso de amor de ontem (The Way We Were, 1973) tem o inconveniente de Barbra Streisand a desempenhar seu eterno papel de moça feia que conquista os homens mais lindos por força de um suposto “charme”. Ela aqui é Katie Morosky, uma judia comunista empedernida que vive uma relação conflituosa com Hubbell Gardiner (Robert Redford), o all american guy de cabelos dourados e sorriso perfeito, que esconde um talento superficial de escritor sob seu tipo esportivo e que, após servir na Marinha durante a Segunda Guerra, faz sucesso como roteirista de Hollywood em pleno macartismo. Quando Katie, grávida, é denunciada como comunista justo quando Hubbell se prepara para assinar novo e rendoso contrato, o casal separa-se definitivamente. Esta cena foi cortada por Pollack, também produtor do filme, após o fracasso de uma primeira exibição-teste, para o desgosto de Streisand e do roteirista Arthur Laurents [de Festim diabólico (Rope, 1948), de Alfred Hitchcock; Na cova das serpentes (The Snake Pit, 1948), de Anatole Litvak; e Quando o coração floresce (Summertime, 1955), de David Lean]: no filme lançado, a separação parece dar-se por causa de um romance extraconjugal. Apesar dessa concessão ao grande público, o filme assume o ponto de vista de Katie, cujo apartamento está recoberto de retratos de Lênin e de Stalin. Mas é a inverossímil história de amor entre os dois personagens ideologicamente opostos, condensada na famosa canção-tema de Marvin Hamlisch, gravada pela atriz cantora, que fez o sucesso deste filme água-com-açúcar teimosamente esquerdista.

Os filmes seguintes de Pollack – Três dias do Condor (Three Days of the Condor, 1975), suspense político com Redford e Faye Dunaway; Cavaleiro elétrico (The Electric Horseman, 1979), comédia romântica com Redford e Jane Fonda no mundo dos rodeios; Tootsie (Tootsie, 1982), comédia de costumes com Dustin Hoffman e Jessica Lange atualizando o tema de Viktor und Viktoria (Alemanha, 1933), de Reinhold Schünzel, refilmado por Blake Edwards em Vitor ou Vitória (Victor Victoria, 1982), sobre desempregado que se traveste para conseguir emprego; Entre dois amores (Out of África, 1985), com Redford e Maryl Streep em drama romântico histórico que consagrou Pollack com o Oscar de Melhor Diretor; Havana (Havana, 1990), com Redford e Lenna Olin em suspense romântico ambientado nos cassinos cubanos de antes da revolução; A firma (The Firm, 1993), suspense político com Tom Cruise e Jeanne Tripplehorn; Sabrina (Sabrina, 1995), desnecessária refilmagem, com Harrison Ford e Julia Ormond, da clássica Sabrina (Sabrina, 1954), de Billy Wilder – consolidaram Pollack como diretor de prestígio em Hollywood, com suas arestas esquerdistas sempre bem aparadas. Seu penúltimo filme, A intérprete (The Interpreter, 2005), com Nicole Kidman e Sean Penn, é um thriller político acima da média; e o último, Esboços de Frank Gehry (Sketches of Frank Gehry, 2005), um fascinante documentário sobre o famoso arquiteto. Mas se a carreira de Pollack começou com a mesma contagiante energia das suas personagens enragées Alva Starr, Gloria Beatty e Katie Morosky, ela acabou assumindo uma falsa neutralidade a Owen Legate, uma dignidade sóbria a Robert Syverton e um brilho superficial a Hubbell Gardiner.

Filmografia

1965: Uma vida em suspense (The Slender Thread).
1966: Esta mulher é proibida (This Property Is Condemned).
1968: Revanche selvagem (The Scalphunters).
1969: A defesa do castelo (Castle Keep).
A noite dos desesperados (They Shoot Horses, Don't They?).
1972: Mais forte que a vingança (Jeremiah Johnson).
1973: Nosso amor de ontem (The Way We Were).
1974: Operação Yazuka (The Yakuza).
1975: Três dias do Condor (Three Days of the Condor).
1977: Um momento, uma vida (Bobby Deerfield).
1979: O cavaleiro elétrico (The Electric Horseman).
1981: Ausência de malícia (Absence of Malice).
1982: Tootsie (Tootsie).
1985: Entre dois amores (Out of Africa).
1990: Havana (Havana). DVD nacional fora de catálogo.
1993: A firma (The Firm, 1993).
1995: Sabrina (Sabrina). DVD nacional fora de catálogo.
1999: Destinos cruzados (Random Hearts).
2005: A intérprete (The Interpreter).
Esboços de Frank Gehry (Sketches of Frank Gehry).

Nota
: Não disponível no Brasil, o melhor filme de Pollack, A noite dos desesperados, pode ser adquirido em DVD no site da Amazon.

Luiz Nazario