quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

Lápide 010 - Kon Ichikawa (1915-2008)


No dia 13 de fevereiro, morreu de pneumonia, aos 92 anos de idade, provavelmente o último grande mestre do cinema japonês: Kon Ichikawa, veterano dos estúdios da Toho e autor de mais de oitenta filmes. Filho de um vendedor de quimonos, Ichikawa apaixonou-se pelo cinema assistindo aos desenhos de Walt Disney. Por isso, iniciou a carreira de cineasta em 1933, como animador no J. O. Studios, em Kioto. Mas logo deixou de animar seus desenhos para tornar-se assistente de direção de filmes live action, estreando na direção com os filmes Toho senichi-ya / A Thousand and One Nights with Toho (1947) e Hana hiraku - Machiko yori / A Flower blooms (1948).

Ichikawa foi consagrado no Ocidente ao ter sua obra-prima, A harpa da Birmânia (Biruma no tategoto / The Burmese Harp, 1956), premiada com o Leão de Ouro, em Veneza. O filme também foi indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. Neste belíssimo conto de fadas sobre a Segunda Guerra, as melodiosas canções que escorrem da harpa do soldado-poeta exercem um poder mágico sobre as tropas, no mesmo sentido erótico com que Orfeu pacificava as feras através de seu canto e de sua música. Não por acaso o órfico poeta Pier Paolo Pasolini colocava A harpa da Birmânia entre os maiores filmes de todos os tempos. Ele parece mesmo ter homenageado o filme de Ichikawa ao usar um canto tradicional japonês na seqüência em que os Argonautas acompanham o som que Orfeu tira da lira em sua versão muito pessoal do mito grego de Medéia (Medea, 1969).

Uma análise mais aprofundada poderia encontrar traços do militarismo japonês na parábola pacifista de Ichikawa, com o soldado-poeta indignado, e ressentido até a loucura santa, com o tratamento dado aos soldados japoneses – que jazem sem túmulo – no fim dos conflitos. Esse ressentimento reflete, em última análise, a amargura com a derrota japonesa e o fim do império, manchando uma mensagem que se queria puramente pacifista, sem tirar, contudo, os valores poéticos dessa narrativa e a beleza plástica de suas imagens magnificamente fotografadas em preto-e-branco.

Outros filmes de Ichikawa foram celebrados pelos críticos: Fogos na planície (Nobi / Fires on the Plain, 1959), filme de guerra com uma nova mensagem pacifista; Yukinojo henge / An Actor’s Revenge (1963), drama sobre um ator de teatro kabuki (Kazuo Hasegawa, estrelando este que é seu 300º filme) que se vinga de três homens que levaram seus pais ao suicídio; Tokyo Olympiad (Tôkyô orimpikku, 1965), documentário sobre os primeiros Jogos Olímpicos transmitidos em massa pela TV, e que alguns críticos colocam acima de Olímpia (Olympia, 1938), de Leni Riefenstahl, sobre as Olimpíadas de 1936 em Berlim (que também tiveram transmissões ao vivo pela nascente televisão, mas ainda para poucos espectadores), como o melhor já realizado sobre o estafante universo dos campeões olímpicos.

Um dos últimos filmes de Ichikawa foi Dora-heita (2000), comédia de samurais cujo roteiro fora co-escrito em 1969 com Akira Kurosawa, quando os dois, juntamente com Keisuke Kinoshita e Masaki Kobayashi, fundaram a companhia cinematográfica independente Yonki-no-kai (Os Quatro Mosqueteiros), que terminou logo após o fracasso do primeiro filme produzido. O último filme de Ichikawa, Inugamike no ichizoku / The Inugamis (2006), refilmagem de um de seus sucessos no Japão, Inugamike no ichizoku / The Inugamis (1976), é um thriller de mistério; ele o dirigiu aos noventa anos, prova de uma rara vitalidade, comum, contudo, a muitos mestres do cinema, essa maravilhosa arte em extinção.

As raras e importantes obras de Ichikawa começam a surgir em DVD graças à iniciativa da Criterion Collection – a distribuidora que possui o melhor catálogo de filmes em DVD atualmente no mercado – que lançou recentemente os filmes A harpa da Birmânia, Fogos na planície e Tokyo Olympiad. Já a Animeigo lançou um filme mais recente de Ichikawa, Dora-Heita (2000).

Luiz Nazario