domingo, 9 de novembro de 2008

Lápide 014 - Desmond Llewelyn (1914-1999)

Desmond Llewelyn, como Mr. Q (primeiro à esquerda), em A View to a Kill (1985)

Desmond Llewelyn começou sua carreira de ator no teatro, em 1939, interpretando um fantasma na comédia Ask a policeman, de Will Hay. Este primeiro papel já era talvez uma premonição de seu destino: aos 80 anos de idade, o ator retornou ao noticiário por ter sido mais uma vez escalado para interpretar, em Goldeneye, o 17º filme da série de James Bond, produzido por Michael Wilson e dirigido por Martin Campbell, o personagem que o celebrizou: Mr. Q, o cientista que vive suprindo o espião inglês de novos equipamentos secretos e artimanhas tecnológicas.

Como Mr. Q, Desmond Llewelyn viajava pelo mundo para promover cada nova produção da série, onde geralmente aparecia por um minuto ou dois. Ele carregava sempre consigo uma maleta de couro preta. A maleta era de boa qualidade mas, com o uso, tornou-se puída, estragada. Mantida sem cuidados, ela parecia refletir o estado de seu dono; não apenas seu estado de espírito, mas também seu estado físico, pois Desmond tinha as pernas e as mãos inchadas e não fazia questão de demonstrar, nem de longe, uma aparência jovial.

Diante de Desmond Llewelyn, os homens de imprensa não sabiam o que dizer, o que perguntar. Por isso ele se previnia e também trazia consigo uma antologia de suas aparições na tela, “para refrescar suas memórias”, como dizia aos jornalistas. Era de fato uma medida necessária. Em toda a série 007, as intervenções de Mr. Q somavam cerca de dez minutos, e isto porque a colagem que Desmond projetava incluía as cenas subseqüentes à sua aparição nos filmes, aquelas que se seguiam à ordem dada pelo Chefe para que Mr. Q calasse a boca, e nas quais ele não era mais visto em cena.

Mesmo depois de ver essa montagem, os jornalistas ainda hesitavam em perguntar alguma coisa a Desmond. Então, segurando um copo de uísque, o velho ator conclamava: “Vocês vão perguntar alguma coisa ou vão ficar aí, bebendo os seus uísques?”. Depois de serem assim constragidos a demonstrar curiosidade a respeito de um velho ator, os jornalistas, que só tinham se ocupado, por exemplo, da jovem e bela Fiona Fullerton, uma das vilãs de um dos últimos James Bond, resolviam voltar suas atenções para Desmond Llewelyn.

O velho ator insistia em que estava muito velho. Quando surgia a pergunta inevitável: “O senhor tem projetos para novos filmes?”, a resposta já amargava em sua boca: “Agora estou velho demais.”. Diante do constrangimento geral, Desmond resolvia ser mais sociável e elaborava uma explicação: “Há muitos papéis que eu gostaria de ter interpretado, mas agora estou muito velho para todos eles”. O velho ator sentia que já havia dito tudo o que tinha a dizer e ia então buscar sua maleta de demonstração, largada num canto da sala.

A maleta tinha um dos fechos quebrado e seu mistério durava apenas um instante. Desmond Lleweyn carregava dentro dela uma coleção de bobagens usadas nos filmes de 007: um óculos especial de raio-X que não passava de um simples óculos escuro; o primeiro modelo de “bip”, lançado num dos filmes de 007; o primeiro projeto de câmara submarina, igualmente “inventado” por Mr. Q; uma caneta cujo truque não podia mais encantar ninguém, porque já fora estragada por crianças; e uma faca de mola, dessas usadas em teatro, que Desmond afirmava não pertencer a James Bond, mas ser uma arma sua, para “esfaquear jornalistas que fazem perguntas irritantes”, ele sussurrava, para quem quisesse ouvir.

Desmond Llewelyn ia tirando todas essas bugigangas da maleta e exibindo cada uma delas maquinalmente, sem o menor entusiasmo. Esses objetos o diminuiam aos seus próprios olhos. Ele sabia o quanto valiam. Llewelyn via-se, na velhice, reduzido a representar um menino – ele, que já fora, no teatro inglês, um herói de William Shakespeare... Ele, que engajdo no exército inglês em 1939, combatera os nazistas e fora feito prisioneiro na França em 1940, permanecendo prisioneiro até o fim da guerra, ou seja, por cinco anos. Por isso ele desprezava aquelas coisas “modernas” usadas por Sean Connery, George Lazenby, Roger Moore, Timothy Dalton e Pierce Brosnan, na pele de James Bond. Ele as tomava e as jogava sobre a mesa, para exibi-las à imprensa, e depois as guardava na maleta aos solavancos, enfiando tudo de qualquer jeito, enquanto elogiava, sarcasticamente, o caráter de antecipação e autenticidade daquela tralha.

Fazia isso por dinheiro e pelo prestígio que adquiriu naquele eterno cameo role. A maleta o sustentava na velhice, era o seu ganha-pão, e o seu show particular. Ela o incomodava, e ao mesmo tempo o exaltava: aposentado, aproveitava essas oportunidades que a série James Bond lhe oferecia para rodar o mundo por conta dos produtores de cada novo filme, promovendo-o a seu modo. Mas Desmond Llewelyn também gostaria de ter interpretado outros papéis, e de ter sido reconhecido como um grande ator dramático. O mercado é cruel: não foi Shakespeare, mas Ian Fleming, quem lhe proporcionou esses contatos com a imprensa, o público e o mundo.

Na pele de Mr. Q, Desmond Llewelyn voltava a ser o fantasma de sua primeira experiência teatral. E, no entanto, Desmond encontrava uma certa grandeza nessa humilhação consentida. Para si mesmo ele criara um personagem absurdo, que poderia ter saído da imaginação de um Samuel Beckett, misto de caixeiro-viajante e Jesus Cristo, que se vingava contra a sorte injusta carregando sua maleta 007 como se carregasse uma cruz. Havia algo de sagrado na via crucis de Desmond Llewelyn. A jovem starlet que o acompanhava, ainda perseguindo suas ilusões, sentia pelo velho ator algo entre a piedade e o respeito. E até o lembrava, com zelo maternal, de mostrar uma das quinquilharias que jazia no fundo da maleta, e que ele havia esquecido de exibir, ou nem quisera pegar: um carrinho de James Bond, um desses modelos miniaturas que se encontram à venda em qualquer lojinha de brinquedos.



Desmond Llewelyn morreu em 1999 num acidente automobilístico, um dia antes do lançamento londrino de sua biografia: Q: The Biography of Desmond Llewelyn. Na série Bond, o comediante John Cleese assumiu o papel de Mr. Q em Die Another Day (2002), mas as aparições do personagem sofreram uma solução de continuidade: o inventor amalucado e visionário que Desmond Llewelyn viveu em dezessete filmes da série Bond foi aposentado na reinação mais vulgar e brutal do 007 de Daniel Craig, em Casino Royale (2006) e Quantum of Solace (2008). No cinema, como na realidade, os produtos da inteligência – mesmo daquela estritamente prática, sorrateira e tecnológica, que os gadgets de Mr. Q manifestavam – vão ficando cada vez mais fora de moda...

Luiz Nazario