quinta-feira, 2 de agosto de 2007

Lápide 007 - Ingmar Bergman (1918-2007)


Na manhã do dia 30 de Julho de 2007, o cinema perdeu um de seus maiores autores: o sueco Ingmar Bergman despediu-se deixando um imenso legado artístico formado por livros, textos teatrais, séries televisivas e mais de cinqüenta filmes. Cineasta da alma humana, dos caminhos tortuosos da existência humana, das aflições íntimas, do silêncio angustiante entre gritos e sussurros, Bergman deu seu último suspiro aos 89 anos, sozinho em sua casa localizada na ilha de Farö, na Suécia. Como o personagem em crise de O Sétimo Selo (1956), ele encontrou-se com sua própria morte, velho, solitário e amargurado num mundo-espelho que se lhe mostrou trincado e monstruoso desde a infância. Em Imagens, livro autobiográfico lançado em 1993, declarou que “fazer filmes é mergulhar até as mais profundas raízes, até o mundo da infância”. Um de seus nove filhos, Daniel Bergman, na tentativa de retratar os tormentos do pai, dirigiu, em 1994, o longa-metragem Crianças de Domingo.

Amante das artes cênicas e da literatura universal (membro da Academia de Letras da Suécia e tradutor de várias obras clássicas como Os Espectros, escrito por Ibsen em 1881), chegou a afirmar que “o teatro é o começo, o fim, é tudo; o cinema está mais próximo do âmbito da prostituição”. Apesar disso, dirigiu filmes até os 85 anos, sendo que Saraband (2003) foi o último deles – produção afinada com a tecnologia digital e com os dilemas conjugais de nosso tempo, realizada de um modo simples e surpreendente, próprio de um cineasta que acompanhou a evolução do meio audiovisual: do cinema mudo ao falado, do preto-e-branco ao colorido, da película ao digital, da tela grande às telas caseiras da TV, do Youtube, do celular... Evolução? Bergman preferiu afastar-se do cinema, mas chegou a elogiar a ousadia dos novos cineastas suecos, como o diretor de Bem-Vindos (2000), Lukas Moodysson, mas nenhum deles alcançou o feeling cinematográfico do mestre.

Memoráveis a amizade duvidosa em Música na Noite (1948); a ousada nudez de Noites de Circo (1953); a doçura amarga de Morangos Silvestres (1957); a estranha presença de Deus em A Fonte da Donzela (1959); a louca epifania em Através de um espelho (1961); a crise existencial do padre em Luz de Inverno (1962); a perturbadora abertura de Persona (1966); a música de Bach que corta O Silêncio (1963); os pesadelos de A Hora do Lobo (1968); a lágrima no rosto morto da irmã desprezada em Gritos e Sussurros (1972); o inferno conjugal de Cenas de um Casamento (1973); as brigas entre mãe e filha em Sonata de Outono (1978); as marionetes macabras de Fanny e Alexander (1982)...

Bergman era admirado por muitos cineastas, cada qual com um estilo peculiar, de Woody Allen a Lars von Trier, de Fellini a Walter Hugo Khouri. Agora, na ocasião de sua morte, muitos deles declararam sua paixão pelo cinema bergmaniano. O diretor português Manoel de Oliveira, com invejáveis 98 anos, diz ter desaparecido “um grande homem e um grande diretor” que superou a “linha da genialidade” para a história do cinema. Andrzej Wajda, cineasta polonês, relembra que ao conhecer Bergman: “impressionou a capacidade que ele tinha de se isolar, de se desinteressar das pessoas que queria absorver sua atenção. Sempre sabia se concentrar exclusivamente no que lhe interessava e graças a isso soube criar um cinema tão extraordinário”.

O italiano Bertolucci afirmou que Bergman “levou o cinema rumo aos territórios até então reservados e exclusivos da literatura: aquilo, da profundidade do espírito humano, sempre mais entre homens e mulheres, com um branco e negro que tornava fantasmas os seus personagens e personagens os seus fantasmas”. Gilles Jacob, presidente do festival de Cannes, apontou Bergman como o cineasta que mais soube aprofundar o “mistério feminino”. O diretor do Festival de Veneza, Marco Müller, declarou que Bergman “refletiu em sua filmografia as angústias e crise do homem europeu contemporâneo”. Até o atual Presidente da França, Nicolas Sarkozy, declarou que o cineasta “se impôs como um dos gênios de nosso tempo. (...) A França, terra da exceção cultural querida por Ingmar Bergman, honra aqui sua memória”. Sarkozy referia-se à política de “exceção cultural” francesa de proteção do cinema nacional, que Bergman aprovava.

Na Suécia, a Fundação Ingmar Bergman, administrada por duas filhas do cineasta, a escritora Linn Ullmann e a diretora Eva Bergman, guarda o acervo cinematográfico doado pelo próprio diretor em 2002, incluindo suas notas, cartas, diários, contos, esboços, fotos, películas de longa-metragem e filmes privados. Na Casa do Cinema de Estocolmo há também um departamento especial dedicado a formatar um banco de dados sobre Bergman. Com a morte do “rei”, os acervos ficarão maiores. Apesar da visão de mundo politicamente manchada pela confissão, anos atrás, de ter se entusiasmado na juventude com a ascensão de Adolf Hitler na Alemanha, as melhores obras de Bergman garantem-lhe um lugar no panteão dos cineastas que, como Tarkovski, provaram que o cinema tem alma.

FILMOGRAFIA (IMDB) / TÍTULOS EM DVD (VERSÁTIL)

2003: Saraband
2002: Infiel (roteiro)
1984: Depois do ensaio
1982: Fanny e Alexandre
1980: Da vida das marionetes
1978: Sonata de outono (Hortsonat)
1977: O ovo da serpente
1976: Face a face
1974: A flauta mágica (Die Zauberfloete)
1973: Cenas de um casamento (Scener ur ett Aktensap)
1972: Gritos e sussurros (Viskningar och Rop)
1971: A hora do amor
1969: O rito
1969: A paixão de Ana
1968: Vergonha
1968: A hora do lobo
1966: Persona: quando duas mulheres pecam (Persona)
1964: Para não falar de todas essas mulheres
1963: O silêncio (Tystnaden)
1962: Luz de inverno (Nattavardsgaterna)
1961: Através de um espelho (Saasom i em Spegel)
1960: O olho do diabo
1959: A fonte da donzela (Jungfrukallan)
1958: O rosto
1957: No limiar da vida
1957: Morangos silvestres (Smultronstallet)
1956: O sétimo selo (Det Sjunde Inseglet)
1955: Sorrisos de uma noite de verão (Sommarnattens Leende)
1955: Sonhos de mulheres (Kvinnodrom)
1954: Uma lição de amor
1953: Noites de circo (Gycklrnas Afton)
1952: Mônica e o desejo
1952: Quando as mulheres esperam
1951: Juventude, divino tesouro
1950: Isto não aconteceria aqui
1949: Rumo à Alemanha
1949: Sede de paixões
1949: Prisão
1948: Porto
1948: Música na noite
1947: Um barco para a Índia
1946: Chove em nosso amor
1945: Crise

Bibliografia em português
ARMANDO, Carlos. O planeta Bergman. Belo Horizonte: Oficina de Livros, 1988.
BERGMAN, Ingmar. Filhos de Domingo. Lisboa: Difel, 1995.
BERGMAN, Ingmar. Imagens. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
BERGMAN, Ingmar. Lanterna Mágica: uma autobiografia. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987.
BJÖRKMAN, Stig. O cinema segundo Bergman. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
SICLIER, Jacques. Ingmar Bergman. Lisboa: Editorial Presença, 1963.

Principais prêmios Festival de Cannes: Melhor Diretor (No Limiar da Vida); Prêmio Especial do Júri (O Sétimo Selo); Palma de Ouro pelo Conjunto da Obra (1997); Festival de Berlim: Urso de Ouro (Morangos Silvestres); Festival de Veneza: Prêmio da Crítica (Fanny e Alexandre); Prêmio Especial do Júri (O Rosto); Leão de Ouro pelo Conjunto da Obra (1971); Oscar: Indicado a Melhor Diretor por Fanny e Alexandre, Face a Face e Gritos e Sussurros; Indicado a melhor filme por Gritos e Sussurros; Indicado a Melhor Roteiro por Através de um Espelho, Morangos Silvestres, Fanny e Alexandre, Sonata de Outono e Gritos e Sussurro.

José Rodrigo Gerace