terça-feira, 28 de novembro de 2006

Lápide 006 - Robert Altman (1925-2006)


Nascido em Kansas City no ano de 1925, o produtor, diretor e roteirista Robert Altman morreu a 20 de novembro de 2006, aos 81 anos, num hospital de Los Angeles, deixando atrás de si uma filmografia impressionante: 87 filmes dirigidos, 38 produzidos, 38 roteirizados – além de 5 filhos de 3 diferentes esposas. Não acertava sempre: fez alguns filmes muito ruins, mas também produziu obras permanentes.

Altman estudou engenharia na Universidade de Missouri, em Columbia, e lutou na Segunda Guerra Mundial, antes de lançar-se no cinema como documentarista em 1951. Desta fase destaca-se seu tocante documentário O espírito de James Dean (The James Dean Story, 1957), realizado logo após a morte do astro, com depoimentos de professores, amigos e parentes próximos. Trabalhou em seguida para a TV, realizando episódios de séries, como dois para “Alfred Hitchcock Presents”, intitulados The Young One (1957) e Together (1958).

Até 1968, Altman permanece atolado em produções televisivas, até que tem a chance de realizar No assombroso mundo da lua (Countdown, 1968), um suspense crítico e realista sobre a corrida espacial, imaginando uma tentativa aventureira da NASA em colocar às pressas, sem as condições ideais, o primeiro homem na Lua. Ainda mais impactante será Uma mulher diferente (That Cold Day in the Park, 1969), filme ainda pouco conhecido, mas que é sem dúvida um dos pontos altos da filmografia de Altman: ao adaptar uma novela sobre um homossexual rico e solitário que caça um jovem num parque para viver com ele, o cineasta, aparentemente conformando-se aos padrões morais da época, mas já os subvertendo, muda o sexo do personagem: a extraordinária Sandy Dennis, como a agora “rica e solitária” caçadora de rapazes, revela nuances perceptíveis, tornando este exemplar de horror gótico ainda mais inquietante.

Altman tornou-se famoso, contudo, com seu filme seguinte, a grotesca comédia M.A.S.H. (MASH, 1970), onde tentou tornar palatáveis os horrores de um hospital militar dirigido por sádicos “divertidos”. A trama se passa na Guerra da Coréia, mas a crítica de Altman à brutalidade da intervenção norte-americana no Vietnã é evidente, pelo que este é considerado o primeiro filme a abordar essa guerra no cinema, ainda que de forma velada. É o mais popular dos filmes de Altman, mas nem de longe o melhor. Mas foi nele que o diretor descobriu o potencial dramático dos rituais, nos quais se inspirará para elaborar a narrativa de seus filmes mais autorais.

Assim é a estranha comédia Voar é com os pássaros (Brewster McCloud, 1970), história de uma obsessão, e de sua cura; o estranho faroeste Onde os homens são homens (McCabe and Mrs. Miller, 1971), banhado na luz invernal da fotografia de Vilmos Zsigmond e na melancolia das canções de Leonard Cohen (“The Stranger Song”, “Sisters of Mercy”, “Winter Lady”); o estranho drama Imagens (Images, 1972), no qual mergulhou fundo no universo da esquizofrenia.

O longo adeus (The Long Goodbye, 1973), baseado no policial de Raymond Chandler, não consegue nem captar nem subverter a atmosfera do filme noir; Renegados até a última rajada (Thieves Like Us, 1974) não diz a que veio; e Jogando com a sorte (California Split, 1974) é mais um “filme de jogo”.

Parecia que a carreira de Altman entrava em declínio, mas eis que ele ressurge com seu filme mais espetacular: Nashville (Nashville, 1975), aonde levou seu estilo à perfeição. Todos os personagens que se dirigem ao mais famoso festival de música country giram em torno de um cadáver ainda não identificado: o da gloriosa estrela, que será assassinada em pleno show.

Depois deste extraordinário sucesso, Altman dedicou-se, cada vez mais, a explorar os rituais em seus filmes. Interessava-lhe, mais que nunca, colocar o homem diante da morte, para imaginar se ele tomaria consciência dela ou se faria alguma coisa para escapar dessa consciência. Em seus filmes a ação passou a girar em torno de um cadáver. O corpo, que sintetiza a realidade cruel, é ignorado pelos personagens, que circulam em torno dele, lançados no redemoinho sem sentido de suas vidas, incapazes de assimilar a realidade, que depende da consciência que se toma da morte. Nos filmes mais autorais de Altman, os personagens não têm existências autênticas; vivem apenas entre rituais e cerimônias: “Estou sempre buscando uma arena. Na maioria dos filmes que fiz, a ação está concentrada em algum tipo de arena”, declarou o cineasta.

Arena como espaço ritual da violência; arena como concentração de forças em conflito; arena como palco de um espetáculo truculento: sobretudo após Nashville, nos filmes de Altman a violência é integrada ao entretenimento e torna-se um dos ingredientes do espetáculo. Em Buffalo Bill (Buffalo Bill and the Indians, or Sitting Bull’s History Lesson, 1976), onde o cineasta revê a lenda de Buffalo Bill, a arena é o parque temático de um velho vaqueiro decadente. Em Três mulheres (3 Women, 1977), Altman retorna ao universo da loucura, e cria uma fantasia bizarra que desconcerta e alucina o espectador. Em Cenas de um casamento (A Wedding, 1978), os rituais de um matrimônio burguês realizam-se em torno do cadáver da venerável avó representada pela diva do cinema mudo Lillian Gish, simbolizando quase a morte do grande cinema norte-americano, ou mesmo de toda uma civilização.

Mas logo ocorre um novo declínio: a ficção científica Quinteto (Quintet, 1979), talvez o pior filme de Altman, ou segundo seus fãs um filme avançado para a época, antecipando o tipo de fantasia de um David Lynch, o que o faz merecer uma revisão (embora eu duvide que ela possa melhorar a claustrofobia da aborrecida trama e a duvidosa direção de arte). Um casal perfeito (A Perfect Couple, 1979) é uma comédia por vezes deliciosa, mas apenas uma comédia. E, em Polícia do corpo perfeito (HealtH, 1980), os rituais de uma vida saudável são tratados de maneira superficial, sem qualquer transcendência. Estaria Altman entregando os pontos?

Não: Popeye (idem, 1980), que os críticos em geral detestam, encanta até hoje pela maneira como o diretor consegue transformar um cartoon em filme com personagens de carne e osso, sem recorrer a grandes efeitos especiais, apenas escolhendo o elenco perfeito: Robin Williams como Popeye, Shelley Duvall como Olívia Palito... Também o elenco de O mito sobrevive (Come Back to the Five and Dime, Jimmy Dean, Jimmy Dean, 1982), especialmente Karen Black e Sandy Dennis, torna este drama de origem teatral (de autoria de Ed Graczyk) um filme acima da média.

Também de origem teatral, O exército inútil (Streamers, 1983), baseado na peça de David Rabe, é outro acerto de Altman. Soldados confinados numa caserna esperam ser convocados para lutar no Vietnã. O homossexual Richie está decidido a conquistar o coração de Billy, que apenas gosta dele como amigo. Richie, porém, não está convencido disto, e para levar Billy a um mergulho dentro de si mesmo, à procura de desejos reprimidos, tenta provocar a libido recalcada dos outros soldados, num jogo perigoso de ciúme e frustração. O negro Carlyle, que deseja apenas saciar em Richie seu desejo animal, não percebe que Richie representa (sendo) o homossexual apenas por amar verdadeiramente o amigo que humilha, colocando-se em situação degradante para tentar assim seduzi-lo. Assim como Roger, que sente por Richie uma curiosidade mórbida, Carlyle é apenas uma peça do jogo e, ignorando suas regras, introduz a violência que elimina Billy. É quando Richie, depois de provocar a tragédia, tira a máscara e confessa, na mais singela inocência: “Eu só queria pegar na mão dele!”, revelando sentimentos mais difíceis de serem expressos que realizados, sendo a liberdade mil vezes mais reprimida que o poder e a carícia mil vezes mais temida que a penetração.

Os anos 1980 não foram espetaculares para Altman. Ele retornou às produções para a TV, intercaladas com filmes de baixo orçamento, que não encontraram muita receptividade: Van Gogh – Vida e obra de um gênio (Vincent & Theo, 1990); O.C. and Stiggs (1987); Além da terapia (Beyond Therapy, 1987); Louco de amor (Fool for Love, 1985); Secret Honor (1984). Assim foi até O jogador (The Player, 1992), um novo sucesso, girando, mais uma vez, em torno de um cadáver. Este, um negro desconhecido, morto pelo rico e famoso diretor de cinema, e que deve ser encoberto para não lhe atrapalhar a carreira. Não é um filme tão bom quanto avaliou a crítica. A trama, que poderia proporcionar um suspense a Hitchcock, termina num anticlímax. É mais uma paródia de Hollywood feita por um deserdado convicto, que permanece, porém, ligado ao sonho do sucesso. Ridicularizando a necessidade de se fazer um filme com violência, sexo, astros, etc. o cineasta independente não dispensa os astros, o sexo, a violência, etc. Altman é um marginal que deseja “lamber” o centro, permanecendo à margem, esticando ao máximo sua língua. Os cameo-roles de dezenas de astros é o maior achado do filme: podemos nos divertir identificando cada famoso perdido nos cenários. O mais difícil de ser encontrado é Brad Davis, já modificado pela AIDS.

Em Short Cuts - Cenas da Vida (Short Cuts, 1993), baseado em nove novelas e um poema de Raymond Carver, desenrola diante do público os rituais cotidianos de 22 pessoas de Los Angeles, interligadas por relações nem sempre fortuitas e por alguns cadáveres: o menino atropelado; a mulher morta no lago; a mulher assassinada na última cena do filme, em meio a um terremoto. O filme parece mostrar que a diferença entre a barbárie e a diversão dissolveu-se na América.

No genial Prêt-à-Porter (Prêt-à-Porter, 1994), os personagens serpenteiam ao redor do cadáver do marido de Sophia Loren. O final do filme é ambíguo. O desfile de modelos nuas revela o vazio da moda. O desfile prossegue no enterro, que adquire o status de um símbolo: o da morte de nossa civilização. O estilista alemão Karl Lagerfeld processou Altman por uma cena em que é chamado de copiador. A cena foi cortada das cópias exibidas na Alemanha. Em Paris, a um crítico que atacou o filme por possuir demasiadas tramas e personagens, a ponto dele – jornalista – perder o fio da meada, Altman respondeu: “Você é filho da televisão. Deveria assistir a Forrest Gump. Ele é todo sobre um assunto apenas. Você será capaz de acompanhá-lo”.

Depois deste novo ponto alto de sua carreira, Altman caiu novamente lá embaixo: Kansas City (Kansas City, 1996) é de seus piores trabalhos. O diretor escalou Harry Belafonte para interpretar o cruel vilão que ordena torturas em forma de operações sem anestesia para punir um pobre vigarista branco. O ator, há muito afastado do cinema, condenara esse tipo de filme, mesmo quando feito por negros: “Os filmes dos jovens diretores negros tratam apenas da juventude nos guetos da América, sobre cocaína, sangue e violência. Hollywood adorou essa linha e se esqueceu de me chamar”. Mas neste comeback, o veterano ator não conseguiu evitar que um veterano diretor independente o obrigasse a desempenhar um vilão típico dos filmes mais comerciais. Seguiram-se, a este, outros filmes alimentares: o policial de suspense A armação (The Gingerbread Man, 1998); as comédias A fortuna de Cookie (Cookie’s Fortune, 1999) e Dr. T e as mulheres (Dr. T. and the Women, 2000).

Mas, como sempre, Altman conseguiu novamente recuperar-se e compor um magnífico painel da sociedade britânica em Assassinato em Gosford Park (Gosford Park, 2001), cuja trama se passa na década de 1930. A bela casa de campo Gosford Park é outra arena bem montada – sobre um cadáver, naturalmente. O casal McCordler oferece uma festa na mansão; a eclética lista dos convidados inclui uma condessa, um herói da Primeira Guerra, um astro de cinema, que se revelará homossexual. Dentro da mansão, o velho mundo choca-se com o novo mundo; e se as diversas classes sociais aparentam conviver em paz, a harmonia é apenas aparente: a história pouco a pouco revela paixões e ódios submersos, que explodem na violência de um assassinato.

Altman dizia que nunca teve de dirigir um filme que não tivesse escolhido ou desenvolvido. Recusava aposentar-se: lançou De corpo e alma (The Company, 2003) e começou a preparar novo filme às vésperas de completar 80 anos de idade.

Eterno defensor da contracultura, o cineasta declarou que se George Bush fosse reeleito abandonaria o país. Não abandonou os EUA em 2004, mas suas produções mostraram-se cada vez mais vinculadas à Europa. No começo de 2006, ao receber pela primeira vez um Oscar, na verdade um Oscar especial, honorário por sua carreira, Altman revelou ter feito um transplante de coração onze anos antes, e que pensava em viver muito mais tempo ainda, já que haviam colocado nele o coração de uma pessoa que morrera jovem; não queria, enfim, que a Academia o enterrasse com esse prêmio – que é dado sempre pouco antes do ganhador morrer, para livrar a consciência dos acadêmicos por injustiças anteriormente cometidas –, mas ele sabia que a morte o rondava. Realizou apenas mais um filme: Bastidores da Rádio / A Última Noite (A Prairie Home Companion, 2006), estrelado por Meryl Streep, sobre a última noite da transmissão de um programa de rádio numa emissora cujas portas estão sendo fechadas...

Como Orson Welles, Robert Altman tinha a aura do gênio, sem o gênio de Orson Welles. Não foi tão grande quanto George Cukor, Ingmar Bergman ou Rainer Werner Fassbinder, mas foi como eles grande diretor de mulheres: em seus filmes, atrizes como Susannah York, Karen Black, Sandy Dennis, Shelley Duvall e Sissy Spacek atingiram alguns cumes de suas carreiras. Pode-se dizer que Altman foi, como Francis Ford Coppola, um diretor in-and-out, acertando e errando sucessivamente, sem se conformar nem com seus fracassos nem com seus sucessos. Há certa grandiosidade neste inconformismo. Talvez por isso, mesmo em seus piores momentos, Robert Altman tenha contado com o favor de críticos generosos, que não se cansaram de descobrir sucessos até em seus fracassos.

Luiz Nazario