quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Lápide 019 - Raoul Ruiz (1941-2011)


Nascido em Puerto Montt, no Chile, Raoul Ruiz passou a adolescência e a juventude escrevendo peças de teatro: foram exatamente 100 peças escritas entre 1956 e 1962, e o número redondo correspondia a uma obsessão por esse número que ele tinha desde criança, quando decidiu um dia escrever 100 peças de teatro...

Em 1963, Ruiz realizou o curta-metragem, de vinte minutos, em preto e branco, La maleta (A mala), contando uma história deliciosamente surrealista: “Um homem passeia pela cidade com uma mala. Dentro dela, há um homem muito menor. Quando o que carrega a mala se cansa, ele para, se instala dentro da mala e o outro assume seu lugar.” Rodado depois de outro curta-metragem, El regreso (1964), e do longa-metragem El tango del viudo (1967), que ficaram inacabados, o primeiro longa-metragem devidamente finalizado de Ruiz foi Três tristes tigres (1968), baseado no romance do escritor cubano Cabrera Infante. Este filme era considerado perdido até há pouco tempo atrás, mas foi felizmente encontrado na Cinemateca Uruguaia, que o restaurou e conserva.

Em El realismo socialista (considerádo commo una de las bellas artes) [O realismo socialista (considerado como uma das belas artes), 1973], que Ruiz realizou no Chile ainda no período da Unidade Popular, um Tribunal do Povo decide que um trabalhador que “se esqueceu” de devolver uma ferramenta precisa ser punido por isso. Quando a expulsãodo culpado é decretada, o réu pergunta, ingenuamente: “Mas não podemos melhorar?”. O trabalhador torna-se cada vez mais conservador enquanto um publicitário conservador acredita chegar à solução dos problemas abraçando a causa revolucionária. Originalmente com quatro horas de duração, o filme procurava desmistificar os mitos políticos no momento mesmo em que eles nasciam. Os diálogos entre os personagens de fala macia e os que falam em voz alta revelariam as ambigüidades da linguagem: os que falam baixo seriam os mandantes e “o tom, a dicção, a atitude de classe” seriam, para além das palavras, “o verdadeiro tema do filme”, segundo Ruiz. Ainda sob a influência da Nouvelle Vague, ele ainda manifestava o desejo realista de registrar os rostos dos chilenos, com suas vozes e suas dicções originais. Mas o amor pelos jogos de espelhos e pelas narrativas labirínticas já o levava para longe do realismo.

Em 1973, a interrupção do regime comunista de Salvador Allende com o bombardeamento do palácio do governo pelos militares dissidentes levou ao poder o general Augusto Pinochet. Em meio à violenta repressão que se seguiu, com milhares de mortos, torturados e desaparecidos, a Chile Films, os Departamentos de Cinema das Universidades do Estado e a Escola de Artes e de Comunicações da Universidade Católica foram fechadas. Um balanço da destruição avalia em milhares os metros de película queimados; 400 filmes proibidos; dezenas de salas de cinema fechadas: das 445 existentes em 1970 só restaram 80 em 1988. Uma boa parte da história do cinema chileno foi assim eliminada pela ditadura.

Como outros artistas e intelectuais chilenos de esquerda que haviam apoiado o regime de Allende, Ruiz exilou-se em Paris. Mas já em Diálogos de exilados (1974) ele documentou, de modo irônico, alguns aspectos da vida de seus compatriotas exilados políticos. Como a maior parte de sua obra foi realizada nesse exílio, sua condição de exilado tornou-se, ao longo de décadas, sua segunda vida. Tendo conhecido o absurdo da existência latino-americana e o da existência em exílio, Ruiz refugiou-se no universo mágico que criou em seus filmes, regidos por leis próprias, onde a realidade é feita de jogos de espelhos e non-sense, de milagres e maravilhas. Com o apoio do Instituto Nacional do Audiovisual da França e de produtores independentes no Chile, em Portugal, nos EUA, o cineasta pode rodar um total de 113 filmes, entre curtas, médias e longas metragens, em geral bem acolhidos pela crítica, mas ignorados pelo público, devido ao caráter enigmático de suas histórias, envoltas em ironias metalingüísticas e malabarismos visuais.

Em Colloque de chiens (Colóquio dos cães, 1975), por exemplo, Ruiz utiliza algumas técnicas de fotonovela para contar a história cíclica de uma menina que descobre ter sido adotada e que, arrasada com isso, torna-se uma prostituta interessada apenas em viver no luxo. Torna-se amante de um rico senhor de 65 anos, até que se apaixona por um jovem de aparência andrógina, que a tira daquela vida de perdição. Já casada, ela sofre com a traição do marido, que se apaixona por uma ex-colega prostituta que ela hospedara em sua casa. Infeliz, ela se suicida e mata o filho com um só tiro. O marido desposa a outra, que logo lhe revela a verdade sobre o passado da ex-mulher, que fora prostituta como ela, e sua amante. Ele se vinga matando-a e espalhando os pedaços do corpo em terrenos abandonados ao redor do café que dirige. Depois se envolve com um golpista e é preso por um golpe mal sucedido. Na prisão, tem uma primeira experiência homossexual. Depois de solto, faz uma operação para mudar de sexo, enriquece prostituindo-se como amante de um rico senhor de 65 anos e adota um órfão, mas é por sua vez assassinado por um rapaz. Mas o filho pequeno mostra-se indiferente ao crime, já que a mãe adotiva não era sua mãe
verdadeira: é o início de um novo ciclo.

Em La Vocation Suspendue (A vocação suspensa, 1977), baseado no romance autobiográfico de Pierre Klossowski, sobre os anos em que este escritor surrealista passou num seminário católico durante a Ocupação nazista da França, é uma parábola crítica que utiliza os rituais católicos para fazer um “acerto de contas” com o universo da política. A partir deste filme, seus filmes se voltaram cada vez mais para a fantasia surrealista, com seus jogos de espelho e suas parábolas enigmáticas.

L’Hypothèse du Tableau Volé (A hipótese do quadro roubado, 1978), escrito por Klossowski, foi esplendidamente fotografado em preto e branco por Sacha Vierny – antigo colaborador de Alain Resnais e Luis Buñuel, responsável pela qualidade única das imagens em preto e branco de Hiroshima, mon amour (Hiroshima, meu amor, 1959) e L’année dernière à Marienbad (O ano passado em Marienbad, 1961); e das coloridas de Muriel, ou le temps d’un retour (Muriel, 1963) e Belle de Jour (A bela da tarde, 1967). O filme de Ruiz foi eleito pelos críticos da revista Cahiers du Cinema um dos dez melhores filmes da década de 1970. A trama desenrola-se como um jogo fascinante sobre o verdadeiro e o falso na arte, com dois narradores (um presente, outro oculto) discutindo possíveis conexões entre uma série de pinturas, envolvendo assassinato e roubo. Em seu esforço de investigação, um dos narradores penetra dentro dos quadros, com suas figuras magicamente se animando e ganhando vida em reproduções tridimensionais.

Sempre interessado no surrealismo, Ruiz realizou o documentário Musée Dalí (Museu Dalí, 1980) e convidou o grande fotógrafo Henri Alekan, que havia assinado a direção de fotografia de vários clássicos franceses, como Anna Karenina (Anna Karenina, 1936), de Julien Duvivier, e La Belle et la Bête (A Bela e a Fera, 1946), de Jean Cocteau, para fotografar seu filme O território (1981), co-produzido por Roger Corman: foi a primeira de uma série de felizes colaborações.

Em Les Trois Couronnes du Matelot (As três coroas do marinheiro, 1983), Ruiz tratou com nostalgia do exílio de um desterrado chileno, com a bela fotografia de Vierny recuperando a dimensão mágica do cinema. La Ville des Pirates (1983) é uma fantasia onírica cheia de terror e suspense, fotografada com mestria por Acácio de Almeida. De passagem pelo Chile pela primeira vez depois do exílio, Ruiz ali rodou Basta la Palabra (1984), logo retornando à Europa. Em 7 faux raccords (1984), podemos ver um pouco do complexo trabalho do fotógrafo Henri Alekan com a atriz Olimpia Carlisi para criar as imagens de colorido mágico que Ruiz queria que seus filmes tivessem. Em Portugal, Ruiz realizou o conto de fadas Les Destins de Manoel (Os destinos de Manoel, 1985). Retornando à França, fez Treasure Island (A ilha do tesouro, 1985), inspirado no romance de Robert Stevenson, sobre um garoto que conhece um pirata de verdade em busca de um tesouro perdido.

Sempre retornando às suas origens teatrais, Ruiz adaptou neste período algumas peças clássicas: Berenice (1983), a partir de Racine; Mémoire des apparences (1987), de Calderon; Richard III (1986), de Shakespeare. Também lançou o interessante, mas cansativo filme-balé moderno Mammame (1986), com o grupo de Jean-Claude Gallotta.

Para o programa Télétests, apresentado por Claude Villers no canaçl FR3 da TV francesa, Ruiz criou um “palíndromo cinematográfico” intitulado Un couple (tout à l'envers) [Um casal (tudo ao contrário), 1980]: uma seqüência silenciosa de dois minutos registra um homem que dorme acordando e levantando da cama à 8h10, quando o sol se levanta em Montparnasse, abraçando a mulher, que prepara um peixe, e saindo de casa. Projetado de trás para frente, acrescentando-se ruídos, música e diálogos, o filme transforma-se radicalmente: agora, um homem entra na casa, é esfaqueado pela mulher e morre na cama, às 20h30, quando o sol se põe em Montparnasse.

Ruiz fez, em seguida, alguns filmes brilhantes, mas excessivos: L’Oeil qui ment (O olho que mente, 1992), que se passa na imaginária Cidade dos Cães, à qual se chega por uma via com próteses de pernas dependuradas nas árvores, e onde uma Virgem Maria aparece nos céus e um sádico marquês diverte-se enterrando pessoas vivas; e Trois Vies et une seule mort (Três vidas e uma só morte, 1996), com Marcelo Mastroiani assumindo três personalidades diferentes, cada uma delas vivendo estranhas histórias. Já Genealogia de um crime (Génealogies d’un crime, 1997) e Le Temps retrouvé (O tempo redescoberto, 1999), baseado no romance de Marcel Proust, caminharam na direção de uma produção mais comercial.

Nem por isso Ruiz se tornou menos artista, como prova a pequena obra-prima que conseguiu unir o experimental e o comercial: Comédie de l’innocence (Crônica da inocência, 2000). No filme, Camille, o filho único de nome ambíguo do casal Ariane (Isabele Huppert) e Pierre, tudo registra com sua câmera digital; no dia de seu aniversário, ao fazer nove anos de idade, ele declara aos pais ser filho de outra mulher. Intrigada, Ariane vai até a casa daquela que seria a verdadeira mãe de seu filho e descobre que ela também acredita que Camille é o filho que ela perdeu quando bebê. O filme avança sobre as areias movediças do delírio e do absurdo, levando a dúvida até à própria mãe, vivida com contida intensidade por Huppert, numa parábola inquietante, dúbia e quase sinistra sobre os limites do real e do virtual.

Raoul Ruiz declarou certa vez que via o mundo como um museu, onde “há obras-primas, depois repetições e ecos”. Se seus filmes são demasiado intelectuais, são também coerentes em seus propósitos: ficções feitas de citações no interior das quais encontramos outras ficções, num labirinto de narrativas tornadas mágicas por fotógrafos geniais (Alekan, Vierny, Almeida), que recorriam a truques, filtros, espelhos, luzes e perspectivas que o cinema industrial não ousava mais utilizar em seu desejo totalitário de realismo, mesmo quando abordava – sem mais nenhuma fantasia – o universo fantástico.

Já Ruiz, mesmo quando dirigia filmes industriais, como o policial Shattered Image (1998), produzido pela Seven Arts Pictures, com William Baldwin e Anne Parillaud, cuidava para que a fotografia colorida deles tivesse um colorido especial, que preservasse o mistério de seu universo, para além dos jogos de espelhos, das tramas labirínticas e dos personagens de motivações ambíguas. No caso deste filme, a fotografia é assinada por outro grande fotógrafo, Robby Muller, que imprimiu às imagens tons azulados. O tratamento especial dado à fotografia é uma forma de minar o deplorável realismo do colorido da maior parte dos filmes industriais. Graças a esses experimentos dentro do cinema industrial, os atuais filmes de super-heróis de Hollywood (300, The Spirit, etc.) passaram a apresentar uma fotografia mais estilizada que deixa menos rançosa a fantasia de gibi que materializam.

Depois de Les âmes fortes (2001), Ruiz fez uma série de documentários: Cofralandes (2002); Miotte (2002); Cofralandes, rapsodia chilena (2002); Medée (2003); Ce jour-là (2003); Une place parmi les vivants (2003); Vertige de la page blanche (2003); Edipo (2004). Retomou a ficção com Días de campo (2004); Responso (2004); Le domaine perdu (2005); Klimt (2006); “Le Don” (episódio de Cada um com seu cinema, 2007); a minissérie de TV La recta provincia (2007); Agathopedia (2008); a minissérie de TV Litoral (2008); La maison Nucingen (2008); El pasaporte amarillo (2009); A Closed Book (2010); o documentário L’estate breve (2010). Toda essa produção passou longe do Brasil...

Ruiz recebeu o título de Docteur Honoris Causa da École Normale Supérieure de Lyon, em 2005, e ministrava cursos de cinema na University of Aberdeen, desde 2007. Em 2010, contraiu um câncer de fígado. Realizou em Portugal a esmerada minissérie de TV em seis episódios, também lançada numa versão para o cinema, Os mistérios de Lisboa (2010), a partir do folhetim de Camilo Castelo Branco. Mais uma vez a trama parte da busca de identidade de um menino aparentemente órfão, que vive num seminário católico e é chamado de bastardo pelos colegas. Ele se obceca em descobrir suas origens e essa busca o leva a diversos países, com histórias dentro de histórias dentro de histórias, em maravilhosa sucessão telescópica de dramas secretos e revelações bombásticas.

Em 2011, Ruiz voltou ao Chile para montar a peça Amledi. Com atraso, a Universidad de Valparaíso concedeu-lhe então o título de Doctor Honoris Causa. Ruiz aproveitou esta nova estada em seu país para aí rodar La noche de enfrente: foi seu último filme, que ele não chegou a finalizar, mas que, esperamos, seja editado segundo suas notas de produção e lançado em sua homenagem. Já não temos a mesma esperança em relação ao drama histórico As Linhas de Torres Vedras (2011), ambientado no século XIX, durante as Invasões Francesas que culminaram com a batalha de Torres Vedras. Estrelado por John Malkovich, o filme seria rodado em Portugal, mas Ruiz deixou-o ainda em estado de pré-produção.

Luiz Nazario

Pós-escrito: Alguns filmes de Ruiz foram lançados em DVD (não há nada, mesmo no exterior, em Blu-ray) no Brasil: La Vocation Suspendue e A hipótese da pintura roubada, clássicos lançados pela Magnus Opus, distribuidora cujos produtos, infelizmente, possuem apresentação e qualidade de imagem em geral abaixo do elevado nível de seu catálogo. No exterior, a coisa melhora um pouco, com destaque para os filmes mais recentes e comerciais do autor, como Genealogias de um crime, O tempo redescoberto e Klimt. Entre os filmes mais antigos, temos Dialogues of the Exiled, da Facets Video, e a excelente edição da Blaq Out, The Films of Raul Ruiz (com os filmes Three Crowns of the Sailor, The Hypothesis of the Stolen Painting e The Suspended Vocation). Esperemos que mais obras do autor, restauradas e com extras que cubram sua vasta produção de curtas, sejam lançadas, preservando a magia da imagem que Ruiz tinha em alta conta.

Alcebiades Diniz Miguel