sábado, 18 de dezembro de 2010

Lápide 018 - Suso Cecchi D'Amico (1914-2010)


 Um dos maiores fenômenos do cinema italiano, a roteirista Suso Cecchi D’Amico, faleceu em Roma aos 96 anos de idade. De 1946 a 2006, ela realizou 118 trabalhos de roteirização de filmes, entre argumentos, diálogos, colaborações e scripts completos. Muitos dos filmes que ela escreveu ou ajudou a escrever resultaram em verdadeiros clássicos do cinema: Ladri di Bicicletta (Ladrões de bicicleta, 1948) e Miracolo a Milano (Milagre em Milão, 1951), de Vittorio De Sica; Bellissima (Belíssima, 1951) e Senso (Sedução da Carne, 1954), de Luchino Visconti; Le Amiche (As amigas, 1955), de Michelangelo Antonioni; Rocco e i suoi Fratelli (Rocco e seus irmãos, 1960), de Visconti; Salvatore Giuliano (O bandido Giuliano, 1962), de Francesco Rosi; Il Gattopardo (O leopardo, 1963), de Visconti; Casanova 70 (Casanova 70, 1965), de Mario Monicelli; Vaghe stelle dell'Orsa (Vagas estrelas da Ursa, 1965), de Visconti; The Taming of the Shrew (A megera domada, 1967), de Franco Zeffirelli; Lo straniero (O estrangeiro, 1967), de Visconti; Metello (Metello, 1970), de Mauro Bolognini; La mortadella (Mortadella, 1971), de Monicelli; Fratello sole, sorella luna (Irmão Sol, Irmã Lua, 1972), de Zeffirelli; Ludwig (Ludwig - A paixão de um rei, 1972); Gruppo di famiglia in un interno (Violência e paixão, 1974) e L’innocente (O inocente, 1976), de Visconti; Jesus of Nazareth (Jesus de Nazaré, minissérie de TV, 1977), de Zeffirelli.

Entrevistada, em 2006, por Mikael Colville-Andersen, Cecchi d'Amico disse-lhe que “roubava” suas personagens e suas situações da literatura, especialmente de seu autor favorito, Dostoievski: “Rocco [de Rocco e i suoi Fratelli] é o Príncipe. Claro que é diferente, mas veio de Dostoievski.” Contudo, mesmo quando adaptava originais literários ou se inspirava na literatura para criar seus personagens e suas situações, Suso Cecchi D’Amico tinha sempre em mente que o que importava num roteiro cinematográfico era sua linguagem visual. Em seus roteiros, as palavras apenas complementavam as imagens, que serviam estritamente à narrativa. Nesse sentido, ela foi uma verdadeira autora: o grande cinema italiano do fim dos anos de 1940 ao fim dos anos de 1970 – que conhece os esplendores do neo-realismo, do moderno cinema autoral e do cinema político – seria muito menor sem a sua contribuição.

Com Mario Monicelli e Tonino Guerra, Suso Cecchi D’Amico foi indicada ao Oscar de Melhor Roteiro por Casanova 70 e, em 1994, ganhou o Leão de Ouro pelo conjunto da obra no Festival de Veneza. Um de seus últimos trabalhos de destaque foi o roteiro do documentário sobre o cinema italiano Il Mio Viaggio in Itália (Minha viagem à Itália, Itália / EUA, 1999), de Martin Scorsese. Apaixonada por sua arte, Suso Cecchi D’Amico continuou trabalhando, sem descanso, até o fim da vida, escrevendo os argumentos e roteiros de Come quando fuori piove (minissérie de TV, 2000), de Monicelli; Il cielo cade (2000), de Andrea e Antonio Frazzi; Raul - Diritto di uccidere (2005), de Andrea Bolognini; Le rose del deserto (2006), de Mario Monicelli; e L’inchiesta (Missão romana, 2006), de Giulio Base.

Luiz Nazario

domingo, 4 de julho de 2010

Lápide 017 - Werner Schroeter (1945-2010)

Diretor de teatro, de ópera e de cinema, morto de câncer aos 65 anos a 12 de abril de 2010, em Kassel, onde havia se internado para uma operação, Werner Schroeter sentia-se completamente identificado com Maria Callas. Começou rodando curtas e médias metragens que já manifestavam a nova sensibilidade surgida no bojo dos movimentos estudantis e que seria a marca do Novo Cinema Alemão: Verona (1967, 10’, p&b); Virginia’s Death (1968, 9’, p&b); Übungen mit Darstellern (1968, CM, p&b) Paula - Je reviens (1968, CM, cor); Mona Lisa (1968, CM, cor e p&b); Maria Callas Porträt (1968, 17’, p&b); La morte d'Isotta (1968, 50’, cor); Himmel hoch (1968, 1’, p&b); Grotesk - Burlesk - Pittoresk (1968, CM, cor e p&b); Faces (1968, 20’, p&b); Callas Walking Lucia (1968, 3’, p&b); Callas-Text mit Doppelbeleuchtung (1968, 5’, p&b); Aggressionen (1968, 22’, p&b); Argila (1969, 36’, cor); Neurasia (1969, 41’, p&b).

Seu primeiro longa-metragem foi Nicaragua (1969, 80’, p&b), mas Eika Katappa (Eika Katappa, 1969, 144’, cor e p&b), uma paródia de óperas famosas, é que tornou Schroeter conhecido junto ao círculo de críticos e cinéfilos, marcando o início de uma das mais singulares carreiras de cineastas. O tema exclusivo de sua obra é Eros que, na civilização tecnológica, sobrevive apenas na recusa e no silêncio.
O símbolo que Schroeter elegeu para designar a impossibilidade do amor universal foi a lágrima.

Em Salome (Salomé, 1971, 81’, cor, TV), a estilização atinge seu máximo para denunciar as forças políticas que se movem em direção ao crime: saída da peça de Oscar Wilde, a Salomé (Mascha Rabben) dança diante das ruínas do templo de Baalbeck encarnando uma juventude contemporânea que usa o poder permissivo para satisfazer seus caprichos. Herodes (Magdalena Montezuma) é envolvido numa trama de desejos perversos, até permitir que Salomé beije os lábios, já frios, da cabeça arrancada ao profeta Jochanaan (Thomas von Keyserling), posta numa bandeja de prata. O crime vai de encontro à vontade inflamada da Rainha Herodias (
Ellen Umlauf), que goza a morte do profeta que predizia a ruína do reino decadente.

Em seus filmes - de Der Tod der Maria Malibran (A morte de Maria Malibran, 1972, 104’, cor), uma fantasmagoria narcísica sobre a história real de uma cantora lírica que desafia a necessidade e morre cantando; passando por Willow Springes (Willow Springes, 1973, 78’, cor), enigmática parábola sobre três mulheres que vivem num deserto, massacrando os homens que passam por ali; Johannas Traum (1975, 30’, cor); Der schwarze Engel (1975); Goldflocken (1976, 163’, cor); Neopolitanische Geschichten (Os irmãos napolitanos, 1978, 136’, cor), sobre dois irmãos que, num quarteirão pobre de Nápoles, escolhem dois caminhos diferentes para suas vidas - o rapaz entrando para o PCI, a moça para a Igreja católica; Weiße Reise (1980, 55’, cor) - até Palermo oder Wolfsbur (De Palermo a Wolfsburg, 1980, 173’, cor), sua obra-prima, premiada com o Leão de Ouro no Festival de Berlim, um filme subversivo contra as condições de trabalho impostas a um jovem siciliano que, arrancado de suas tradições católicas e transportado para a terra da Volkswagen, é conduzido à violência pelo choque da aculturação - aqueles personagens que conservam o rosto humano trazem sempre nos olhos uma lágrima.

Para seus delírios arrebatadores, Schroeter contava com uma atriz extraordinária: Magdalena Montezuma, capaz de sofrer todas as metamorfoses em seu corpo e de viver todas as nuances de um sentimento: de uma cantora dos tempos do nazismo em Der Bomberpilot (1970, 65’, cor, TV) ao rei Herodes de Salome e ao rei Macbeth em Macbeth (1971, 60’, cor, TV). A imprensa européia tratava Werner Schroeter – um homem de feições e gestos delicados, olhos inteligentes, voz suave e longos cabelos – como um artista decadente. Contudo, a decadência é revolucionária quando reflete o esplendor de um mundo perdido, cuja simples lembrança faz empalidecer os arautos do mundo triunfante, com seus pequenos brilhos empanados. Por isso Werner Herzog encomendou-lhe a encenação da ópera que abre Fritzcarraldo, e na qual Sarah Bernhardt é representada por um travesti borrado de pintura.

Ao contrário de muitos cineastas homossexuais que fazem filmes “viris”, Werner Schroeter fazia filmes deliberadamente “afetados”: na posição da câmara; na duração de cada cena; na escolha dos cenários, dos figurinos e da maquilagem; na granulação da fotografia; no uso da teleobjetiva; na concentração da ação num espaço fechado, onde tudo delira; na composição das personagens e na interpretação carregada ou sublimada que exigia de seus intérpretes, quase sempre mulheres, mesmo para os papéis masculinos, Schroeter integrava sua homossexualidade no fluxo das imagens, compondo a cada novo filme uma expressão plástica e direta de seu desejo.

Mesmo em Generalprobe (Ensaio geral, 1980, 90’), ao documentar o Festival de Nancy, Schroeter só retém da massa de espetáculos as imagens que alimentam sua libido: as representações do amor, da solidão e da morte; o lirismo patético de performers (
Kazuo Ôno, Pina Bausch, Pat Oleszko) que haviam atingido, através de uma técnica perfeita, alguma forma intemporal de êxtase. A certa altura do filme, Schroeter declara amor a um amigo, “justificando” o ódio homofóbico com que era tratado pela imprensa conformista.

Tag der Idioten
(O dia dos idiotas, 1981, 107’, cor) é uma decepção: Schroeter parecia ter perdido o rumo. Carol Schneider (Carole Bouquet) leva uma vida sem sentido com o amante Alexander e decide se internar num hospício: prefere viver ali que no mundo real, apesar de todos os seus horrores, o que a leva no final, sem vislumbrar saída entre a loucura e a realidade, a cometer o suicídio.

Schroeter
realizou nova extravagância em Liebeskonzil (O concílio do amor, 1982, 92’, cor), adaptação da peça de Oskar Panizza, que se passa no céu, no inferno e na corte do Papa Alexandre VI, no ano de 1495. O filme é servido por uma maquiagem e uma iluminação expressionistas, onde as cores carregadas operam divisões de espaço perfeitamente delimitadas – durante um beijo, uma língua avermelhada toca outra azulada, sem que se fundam as luzes coloridas.

Decidido a incomodar os ditadores do mundo, Schroeter desmascarou, nas Filipinas, o regime de Emelda e Ferdinand Marcos em Der Lachende Stern (A estrela sorridente, 1983, 110, cor). O esteticismo do diretor fez-se presente na imagem mais bela do filme: uma brincadeira de criança com palitos quebrados e justapostos que, molhados, abrem-se como uma estrela. Além dessa imagem recorrente, Schroeter revela sua sensibilidade barroca filmando flores luminosas pontuando algumas seqüências; uma dança do charuto; um balé erótico de homossexuais numa boate; e incluindo na trilha sonora Elvis Presley e a própria Imelda Marcos cantando “Feelings”, do compositor brasileiro Morris Albert. Nesses momentos, Schroeter mostra-se um discípulo de Pier Paolo Pasolini, tão fascinado pela santidade que termina seu filme com a imagem da Pietà, onde o Cristo é representado por si próprio, como a confessar que o engajamento da arte é o martírio do artista e que ele, como Cristo, aceita esse martírio.

Em outro documentário poético, De l’Argentine (Da Argentina, 1985, 92’, cor), Schroeter assinou nova denúncia das ditaduras, tendo por alvo o sangrento regime do general Videla – não sem demorar-se nas imagens fetichistas e teatrais de Eros, promotoras do êxtase estético, sua paixão e razão de ser.

O tema do martírio retorna em Der Rosekönig (O rei das rosas, 1986, 106’, cor), rodado em Sintra e inspirado no poema “O corvo”, de Edgar Allan Poe: numa mansão portuguesa à beira-mar uma mulher (Magdalena Montezuma) agoniza enquanto seu filho adolescente (Mostefa Djadjam) cultiva rosas no jardim; na granja, o belo jardineiro Fernando - interpretado por Antonio Orlando, que foi um dos rapazes imolados em Salò de Pier Paolo Pasolini - prepara-se para expiar com violência seus misteriosos pecados; Montezuma, a atriz predileta de Schroeter, que agoniza e morre no filme, morreu de câncer logo após as filmagens desse conto de fadas perverso, carregado de beleza e de crueldade.

Depois do documentário Auf der Suche nach der Sonne (1986, 60’, cor, doc, TV), sobre Ariane Mnouchkine e seu grupo Théâtre du Soleil, Schroeter dedicou-se mais ao teatro e à ópera. Seus últimos filmes foram: Malina (1991, 125’, cor), adaptado da novela de
Ingeborg Bachmann, com Mathieu Carrière e Isabelle Huppert; Poussières d'amour - Abfallprodukte der Liebe (1996, 130’, cor), um filme-performance onde Elisabeth Cooper acompanha ao piano algumas divas favoritas de Schroeter, hospedadas na arruinada abadia medieval de Royaumont, nos arredores de Paris, com uma pessoa de sua escolha, para falar de amor e canto e trabalhar uma ária escolhida pelo diretor; Die Königin - Marianne Hoppe (2000, 101’, cor), documentário sobre a veterana atriz, desde o cinema nazista, Marianne Hoppe; Two (França / Alemanha / Portugal, 2002, 121’, cor), espécie de “autobiografia surrealista” escrita para Isabelle Huppert, que aí interpreta duas mulheres, aparentemente gêmeas, mas que se desconhecem, e que representariam o diretor; e This Night (2008, 110’, cor), baseado na novela de Juan Carlos Onetti.

Um viajante internacional desde quando cursava as universidades de Bielefeld e Heidelberg, Werner Schroeter valorizou a paisagem em seus poemas cinematográficos: o deserto de Mojave em Willow Springs; o sul da Itália em Il Regno di Napoli e Palermo oder Wolfsburg; o templo libanês de Baalbeck em Salome; as Filipinas em Der lachende Stern; Buenos Aires em De l’Argentine; Sintra em Der Rosekönig; Paris em Poussières d'amour - Abfallprodukte der Liebe; Nancy em Generalprobe... Mas de todas as paisagens, nenhuma é tão bem explorada nos filmes de Werner Schroeter quanto aquela que é a mais bela de todas as paisagens que existem no mundo: o rosto humano.

WERNER SCHROETER EM DVD:
Pack Werner Schroeter (3 discos) com: Duas (Two); Esta Noite (Diese Nacht); O Rei das Rosas (Der Rosekönig). Em português.
Nuit de chien (Diese Nacht). Em francês.
Tonight (Diese Nacht). Em francês e inglês.
Poussières d'amour (Abfallprodukte der Liebe). Em francês.
Nel regno di Napoli (Neapolitanische Geschichten). Em italiano.

WERNER SCHROETER EM LIVRO:
Werner Schroeter, de Sabina Dhein. Em alemão.
Werner Schroeter. de Werner Schroeter. Em alemão.

Luiz Nazario