sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Lápide 015 - Harold Pinter (1930-2008)


O dramaturgo e roteirista britânico Harold Pinter, que também atuou como ator, diretor e autor de teatro e teledramas, vencedor do Nobel de Literatura 2005, morreu aos 78 anos de idade, com um câncer (que começou no esôfago e ganhou o fígado). A terrível doença (“meu inferno pessoal”, declarara) já o impedira de ir à recente cerimônia que o empossou como Doutor “Honoris Causa” na Central School of Speech and Drama de Londres.

Filho de imigrantes judeus que chegaram à Inglaterra no século XIX, através de Portugal, perseguidos desde a Rússia e a Polônia, Pinter atribuía à sua própria vivência do anti-semitismo na juventude sua decisão de tornar-se um dramaturgo. Integrante da angry generation britânica, assombrando pelo Holocausto e pela ameaça atômica da Guerra Fria, Pinter escreveu peças teatrais que primavam pela crítica social, o absurdo das situações e a sensação de uma ameaça iminente, como The Birthday Party (“A festa de aniversário”, 1958).

Pinter escreveu 25 roteiros para o cinema, desde a versão de sua própria peça The Caretaker / The Guest (“O convidado”, 1963), dirigida por Clive Donner, fotografada por Nicolas Roeg e produzida de forma independente por um consórcio de celebridades, incluindo Richard Burton, Elizabeth Taylor, Peter Sellers, Noel Coward e Leslie Caron; e incluindo alguns projetos não realizados, como A tragédia de Rei Lear (2000), sua adaptação da peça de William Shakespeare, encomenda do ator Tim Roth, que até hoje não foi filmado. E ele se orgulhava de todos os filmes que escrevera, sendo que o único do qual retirara seu nome dos créditos foi The Remains of the Day (“Vestígios do dia”, 1993), de James Ivory, que teve seu roteiro inteiramente reescrito.

De todos os filmes escritos por Pinter, destacam-se três, realizados pelo cineasta Joseph Losey: o inquietante The Servant (“O criado”, 1963), a partir da novela de Robin Maugham, em que um patrão de caráter fraco vê-se pouco a pouco seduzido, subjugado e humilhado pelo próprio criado, que se revela progressivamente ambicioso, sádico, dominador; Accident (“Estranho acidente”, 1967), a partir da novela de Nicholas Mosley, sobre um triângulo amoroso que termina de forma violenta, num desastre de automóvel misteriosamente simbólico; e o perturbador The Go-Between (“O mensageiro”, 1970), adaptado da novela de L. P. Hartley sobre um menino usado como correio pela exuberante prometida (Julie Christie) do tio aristocrata numa ligação clandestina que ela mantém com um empregado da fazenda vizinha (Alan Bates): sofrendo a frustração de seu primeiro amor, o adolescente termina conduzindo os amantes, que ele surpreende em coito na estrebaria, a um trágico desenlace, pouco antes do início da Primeira Guerra Mundial. Outro roteiro que Pinter escreveu para Losey, uma adaptação de O tempo reencontrado, de Marcel Proust, não chegou a ser filmado.

Ainda que sem a mesma vigorosa estranheza e ambigüidade de sua parceria com Losey, Pinter escreveu outros roteiros tão elegantes e frios, como os de The Last Tycoon (“O último magnata”, 1976), último filme de Elia Kazan, sobre um grande produtor hollywoodiano (Robert de Niro) que decai perseguindo uma garota que lhe recorda um amor do passado; e onde Jack Nicholson tem um pequeno papel, e Robert Mitchum, Tony Curtis, Ray Milland, Dana Andrews e Anjelica Huston aparecem em cameo roles; The French Lieutenant's Woman (“A mulher do tenente francês”, 1981), de Karel Reisz, a partir do romance de John Fowles, com Maryl Streep e Jeremy Irons; Betrayal (1983), de David Hugh Jones, onde Pinter ficcionou sua própria traição conjugal com a radialista Joan Bakewell no início dos anos de 1960; Turtle Diary (“Diário da tartaruga”, 1985), de John Irving, com Glenda Jackson; The Comfort of Strangers (“Uma estranha passagem em Veneza” / “Estranha sedução”, 1990), de Paul Schrader, versão de O prazer do viajante, de Ian McEwan, e onde um casal de sadomasoquistas (Helen Mirren e Christopher Walken) atrai para seu sombrio palácio um jovem casal (Natasha Richardson e Rupert Everett) em passeio romântico e turístico em Veneza, envolvendo-os numa teia de sedução até a morte; The Trial (“O processo”, 1993), de David Hugh Jones, sóbria adaptação do romance de Franz Kafka; e Sleuth (2007), de Kenneth Branagh, seu último roteiro cinematográfico, revivendo a peça de Anthony Shaffer adaptada pelo autor na primeira versão em Sleuth (“Jogo mortal”, 1972), último filme do veterano Joseph L. Mankiewicz.

Tanto em suas peças quanto em seus roteiros Pinter criava uma realidade aparentemente banal pouco a pouco transfigurada em mistério pela sutil atmosfera de perversão que perpassava os diálogos cortantes e os momentos pesados de silêncio, com uma aguda consciência de classe projetada na alma dos personagens. A atenção aos detalhes transformava-se freqüentemente em verdadeira obsessão de Pinter: durante os ensaios de uma de suas peças, que ele mesmo encenava, implicou com um ator cujo papel limitava-se a ficar num canto sem se mexer, com um capuz na cabeça, e exigiu que o ator fosse substituído por outro, pois aquele “não estava bem no papel”. O típico humor negro inglês também nunca deixou de fazer parte de seu universo.

Depois de escrever 29 obras teatrais, Pinter encerrou a carreira de dramaturgo com um drama musical, Voices, de 29 minutos, escrito em colaboração com o compositor James Clarke: uma narrativa fragmentária sobre o “inferno que todos compartilhamos aqui e agora”, enfocando violentos abusos de prisioneiros inocentes por seus torturadores contra projeções em tela de fundo de imagens de Estados totalitários não identificados. A mente e a obra de Pinter eram ocupadas pelas feridas na alma causadas tanto pelos jogos do desejo nas relações sexuais e conjugais quanto pelos jogos do poder nas relações entre assassino e vítima, torturador e torturado, senhor e escravo.

Eterno enragé (em 1949 negou-se a prestar o serviço militar por objeção de consciência; em 1996, rechaçou o título de cavaleiro que lhe oferecera o governo de John Major), nos seus últimos anos Harold Pinter alinhou-se com a “esquerda” oficial, cada vez mais desorientada após a queda do Muro. Prestou solidariedade ao ditador Fidel Castro; assinou o manifesto “Se eu fosse venezuelano, votaria em Hugo Chávez”; associou-se ao infame Comitê Internacional de Defesa de Slobodan Milosevic apelando para a libertação do genocida diante da “injustificável” intervenção da NATO na Iugoslávia; protestou contra o alinhamento da Inglaterra com o governo Bush durante a Guerra do Iraque pedindo a retirada das tropas britânicas; e, numa de suas raras manifestações em público, durante a marcha pacifista de Londres em 2003, bradou: “Os Estados Unidos é um monstro desenfreado (...) um país governado por um bando de lunáticos criminosos com Tony Blair como seu assassino cristão mercenário”.

Americana igualmente opositora dos abusos da guerra e vítima de um longo câncer, Susan Sontag manteve até o fim da vida, ao contrário de Pinter, o senso crítico e autocrítico: ela qualificou com razão de nonsense o discurso antiamericano de Pinter no festival literário de Edimburgo em 2002, onde ele classificou os EUA de “Império do mal” e concluiu que 11/09 refletia “o que o mundo pensa sobre os EUA, o país mais poderoso e odiado do planeta”. “Dizer que isso é o que todos pensam dos EUA”, observou Sontag, “é estúpido. Isso é metade do que as pessoas pensam dos EUA. A outra parte é a mais abjeta adoração a essa cultura popular terrível que corrompe o planeta. Minha visão talvez seja simplista, mas a de Pinter é ainda mais. Ele é um demagogo. O imperialismo americano é amado e odiado”.

Luiz Nazario